Vargas Llosa e a tia Júlia

Morto há dois meses, o escritor peruano Jorge Mario Pedro Vargas Llosa é o típico exemplo de personagem que pode ocupar os dois opostos de uma polarização: de um lado, o homem; de outro, a obra. Normalmente, quem costuma ‘cancelar’ os artistas cancela os dois! Esquece de tudo de bom produzido pelo artista para condená-lo, juntamente com sua obra, ao ostracismo, por causa de alguma coisa que contrarie o ‘senso comum’ próprio que cada um tem.

Eu prefiro separar os dois. Llosa, o escritor, é algo fenomenal, inesquecível; o homem, o político, era algo a ser combatido, por sua tendência à direita radical, destrutiva, exatamente o oposto do que ele erigiu com sua obra. Pois eu não deixo de louvar o autor, independentemente de sua odiosa posição política. E uso este espaço para homenageá-lo por duas de suas obras.

‘Tia Júlia e o Escrevinhador’ foi o segundo livro que li dele. O primeiro foi ‘Pantaleão e as Visitadoras’, que inoculou em mim uma ligeira febre pela obra do autor. Devorei ‘Pantaleão…’, devorei ‘Tia Júlia…’, mas minha voracidade foi aplacada já no terceiro livro, ‘A Casa Verde’, mais complexo, menos original e com texto um pouco mais rebuscado e cansativo que os dois primeiros.


Escrito em 1973, ‘Pantaleão e as Visitadoras’ era para mim um libelo contra a burocracia castrista, presente até em assuntos menos militares, como a contratação de prostitutas. Pantaleão era um sargento do Exército com a incumbência de arregimentar moças alegres para enfeitar o ócio tenso dos soldados que serviam num batalhão avançado, metido no meio da Amazônia peruana. A dignidade fardada com que o personagem se desincumbia de sua missão foi o ponto alto da trama. E a originalidade de Llosa mostrou-me o suficiente para que eu buscasse uma segunda obra.


O segundo livro, ‘Tia Júlia e o Escrevinhador’, não me decepcionou. Ao contrário, aumentou minha admiração nascente por sua obra. Foi escrito em 1977 e é um romance semibiográfico. Tia Júlia era mesmo quase uma tia do autor, e transformou-se em sua primeira mulher. Eles se casaram em 1955, quando Llosa tinha 19 anos.

Júlia Urquidi era boliviana, divorciada e, além de ser irmã da mulher de um tio materno do escritor, era dez anos mais velha que ele. Só o fato de ter dez anos a mais provocaria uma revolução – apaixonadamente enfrentada – na família de Mario Vargas Llosa.


Toda essa oposição familiar está retratada no livro. Para dosar os trechos às vezes melosos de sua saga romântica, Llosa lançou mão de uma história paralela, a do ‘escrevinhador’ do título: Pedro Camacho era um autor de radionovelas – grande sucesso na época – que trabalhava na mesma emissora que Varguitas, o alter ego do escritor, que também tinha pretensões literárias, embora menos popularescas que as do novelista.


O original dessa vertente da história é que Camacho escrevia tanto, tão seguidamente, que começou a misturar histórias e personagens, embaralhando até mesmo características físicas. Não me lembro exatamente do texto, mas todos os heróis masculinos de Pedro Camacho tinham ‘olhar aquilino e nariz adunco’; com os surtos de confusão, algumas mulheres passaram a ter o olhar aquilino e o nariz adunco e alguns homens ficaram com o olhar adunco e o nariz aquilino.

Mario Vargas Llosa enfrentou a batalha familiar para viver o sonho de amor com sua tia Júlia, mas a história encantada não durou para sempre. Num trecho do livro, a antevisão da própria personagem para o desfecho de seu caso: “Sei como vai ser no futuro com todos os detalhes, vi numa bola de cristal – me disse tia Julia, sem a menor amargura. – No melhor dos casos, a nossa história duraria três, talvez uns quatro anos, quer dizer, até que você encontre a menininha que será mãe de seus filhos. Então você me dará um chute e eu terei de seduzir outro cavalheiro. E aparece a palavra fim.”

Mal sabia ela que ‘a menininha’ que seria mãe dos filhos de Varguitas seria sua (de Júlia) sobrinha, Patrícia, com quem Llosa se casou e com quem viveu durante 50 anos, até 2015. Tia Júlia viveu com o sobrinho de 1955 a 1964. Morreu em março de 2010.

Uma história dessas merece ser ‘apagada’ da memória porque o autor, o homem, desagradou o ‘senso comum’ por suas posições políticas?

Marco Antonio Zanfra

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