Memória

“50 anos de jornalismo, um acaso programado”

Cobertura do Carnaval na década de 70 na avenida Tiradentes

Emprego bom. Podia dormir até tarde porque o expediente só começava às 13 horas. Eram tempos de chumbo, em plena ditadura. O ano, 1968, época de grandes acontecimentos. Desde o lamentável AI 5, em dezembro de 1968, até a conquista da Lua em julho de 1969 e Woodstock em agosto de 1969.

E meu registro de jornalista profissional no Ministério do Trabalho, por força do Decreto-Lei nº 972, de 17 de outubro de 1969.

Trabalhava em um banco chamado Brasul que, depois, foi comprado pelo Itaú.

Com 20 anos, eu era responsável pelo departamento de Compensação. Naqueles tempos, a pessoa passava um cheque e quando ele era devolvido por falta de fundos, assinatura incorreta e outros problemas, vinha para as minhas mãos. Era um trabalho burocrático e mecânico. Não exigia qualquer genialidade. Apenas atenção e boa noção de matemática.

Trabalhava sozinho e, assim, mandava em mim mesmo. Até que um dia me arrumaram um ajudante. Tonhão. Infelizmente não vou me lembrar do nome completo.
Bom sujeito, trabalhava no Popular da Tarde, jornal vespertino do Diário Popular que iria começar a circular em breve. Tonhão era chefe da revisão e estava montando sua equipe.

Eu começava a estudar direito e talvez por isso, Tonhão elogiava meu português. Era tudo que ele precisava para a revisão do Popular da Tarde. Então me perguntou:

– O que você faz de manhã?
– Durmo!
– Quer trabalhar no jornal?

Aceitei na hora. Não tinha nada a perder, mesmo sem saber exatamente o que eu iria fazer na tal da revisão. Pensei na última vez, e primeira, que trabalhei com o papel impresso.

Quatro anos antes. Eu era auxiliar de escritório na fábrica de Molas Sueden, no Brás. Meu amigo de colégio, Antônio Carlos, foi demitido porque estava prestes a entrar para o serviço militar no exército. Então, me convidou para ir trabalhar com ele, um bico, um emprego temporário que lhe permitisse sustentar a mãe e uma irmã menor.

Fui solidário. No dia seguinte pedi demissão na Sueden. Pegamos o dinheiro da rescisão e fomos para o centro da cidade, rua Direita e imediações.

Eu usava paletó e gravata e, de repente, me surpreendi carregando uma pilha de jornais nas costas. O trabalho consistia em comprar jornais velhos nos escritórios da região e depois revender para os depósitos de reciclagem.

Assim, o jornal entrou em minha vida. Nem é preciso dizer que durou pouco, uns três ou quatro dias de sacrifício e nós dois jogamos a toalha.

Na revisão do Popular da Tarde, rua do Carmo, o trabalho era ler notícias. Melhor que somar o valor de centenas de cheques. Se o texto estava errado, eu corrigia. Me lembro de algumas correções marcantes. Um colunista teimava em escrever Asterístico e nós da revisão corrigíamos para Asterisco. Outro, gostava de usar o jargão “como soe acontecer”, do verbo soer, quando o correto é “como sói acontecer”.

Ganhava o dobro do salário no banco e por isso saí. Logo, fui trabalhar também nos Diários Associados, Diário de S. Paulo e Diário da Noite, na rua Sete de Abril.

Como eu saía por volta da meia-noite dos Associados, nunca conseguia pegar o último ônibus para a casa onde eu morava com minha irmã Neusa, no Jardim Eliane, perto da Vila Nhocuné, zona Leste de São Paulo, quase em Itaquera.

Largava um emprego muito tarde e entrava em outro muito cedo. A solução foi dormir na própria revisão do Popular da Tarde. Juntava duas mesas que serviam de cama e usava um pedaço da bobina de papel como lençol. Literalmente dormi em cima das mesas durante uns quatro a cinco meses.
Resolvi o drama trocando os Diários Associados pela revisão do Estadão, depois de passar por um rigoroso teste de admissão.

Um dos piores empregos da minha vida. Passava seis horas sentado em frente a uma mesa, lendo páginas e páginas de balanço de empresas. Não suportei.
Três meses depois, pedi demissão e subi até o terceiro andar onde ficava o Jornal da Tarde. Pedi emprego e me ofereceram um estágio como repórter.
Era o máximo, mas ganhava muito mal como foca. Uma amiga da redação costumava dizer que ser jornalista, à época, era o melhor emprego do mundo. Se pagasse bem, seria o paraíso.

Fiquei um ano no JT, fazendo matérias sobre trânsito. Meu chefe era o ex-ministro Miguel Jorge e meu editor o Moisés Rabinovich.

Daí, pulei mais tarde para a reportagem da TV Globo, jornal Folha de S. Paulo, Jornal O Globo (sucursal São Paulo). Mais tarde, fui trabalhar com assessoria de imprensa, com a fundação da Casa da Notícia Comunicação.

Nesse meio tempo, encontrei com um antigo amigo de colégio que perguntou minha profissão. Eu disse que tinha virado jornalista por acaso. Ele respondeu que devia ser um acaso programado, pois como ele se recordou, eu era muito curioso e vivia escrevendo histórias e poesias. Só poderia ser jornalista mesmo, disse ele. Ou seja, quase um acaso programado, se é que isso pode existir.

Nereu Leme