Que las hay, las hay

Nunca digeri muito bem os 40 dias entre a Quarta-Feira de Cinzas e a Páscoa, também chamados de Quaresma. Pode ser culpa da formação católica (cheguei até a estudar em seminário de padres) essa minha relação estranha com esse período. Digo estranha porque desde sempre, nesta época, minha mãe, beata militante, estabelecia algumas regras complicadas lá em casa. Carne, nem pensar; sexta-feira era dia de jejum, algo comestível só após o meio-dia.

Sexta-Feira Santa demandava mais rigor ainda, nem banho se tomava, imaginem. Mais tarde veio um papa aí e decretou que carne podia sim, afinal nem todo mundo podia comprar peixe, bacalhau muito menos. Foi quando minha mãe deu uma relaxada, mas aí eu já tocava a minha vida longe da casa dela.

Essa rigidez toda, esqueci de dizer, é mais comum na zona rural, de onde viemos. A propósito, cansei de ouvir histórias de minha mãe, sobre eventos ‘fantasmagóricos’ que ela ou alguém de seu conhecimento viveu ou presenciou exatamente nesse período do ano. Pelo visto, os fantasmas e espíritos não se dão muito bem em meio aos holofotes e luzes dos grandes centros urbanos. Lembro que me arrepiava todo com os relatos dela, mas, mesmo assim, adorava ouvi-los.

Quando solteira, seu meio de locomoção por entre fazendas e sítios da região onde ela morava era cavalo ou mula. Pois não é que numa noite, de lua cheia (que fique bem claro), ela voltava para casa com uma amiga, quando de longe seu cavalo se pôs de orelhas em pé: havia um grande bicho deitado sob uma figueira, bem no meio da estrada. Irrequieto, o animal se recusava a seguir em frente.

Como minha mãe o tocasse, o cavalo enveredou a galope pelo meio do pasto e saiu bem à frente da figueira. A mula, montada pela amiga de minha mãe, nem se abalou. Passou tranquilamente ao lado do bicho e seguiu seu caminho. Segundo a moça, o ser tinha a aparência de um grande bode e nem se mexeu. Era Quaresma, eu hem?

E vou dizer mais uma coisa, não é por ser minha mãe, mas ela não mentia. Mas havia casos que ela contava só por diletantismo ou para assustar a gente mesmo. O do Adriano Lobo era um dos que mais me incomodava. Esse cara, dizem, morava com a mãe, tão religiosa quanto a minha, e rigorosa quando o assunto era Quaresma. Não é que, justo numa Sexta-Feira Santa, ele resolve ir a um baile. Ela fez de tudo para impedir, consta que até tocou o cavalo que ele, a muito custo, conseguira laçar no pasto. Irritado, pegou os arreios e os colocou sobre a mãe e a cavalgou.

Não precisa dizer que por causa da praga que a mãe lhe rogou, com aparência de lobo, ele até hoje vaga por aí, durante a Quaresma. Outro ser noturno que anda perdido por aí, conforme o pessoal da roça, é Judas, o traidor. Teria sido condenado a vagar pelo mundo sem rumo, a bater à porta das casas, às altas madrugadas. Na minha, felizmente, nunca bateu…   

Já que estamos falando de susto, assombração, não sei exatamente em que época do ano era, mas essa história se deu comigo. Ali pelos meus cinco, morávamos numa pequena casa num sítio próximo da cidade. Filho único ainda, dormia numa cama, encostada à parede, ao lado da cama de meus pais. Perto do amanhecer, certo dia, percebi “alguém” ao lado de minha cama. Seja lá quem fosse, gritei ao sentir uma mão gelada encostar na minha. Enquanto minha mãe perguntava o que acontecia, eu ainda consegui ver a cortina de ráfia se mexendo, como se “aquilo” estivesse saindo às pressas do quarto.

Pode ter sido sugestão ou imaginação de uma criança sozinha, acostumada a viver num mundo de fantasia, mas vai saber. Aí, quando eu tinha uns oito anos, mudamos para São Paulo e fomos morar numa casa na Vila Matilde, zona leste. A grana curta obrigou minha mãe a comprar alguns móveis usados, entre eles um guarda-roupa. Foi colocado no corredor, não cabia no quarto.

A partir desse dia, nós não conseguimos mais dormir direito. À noite, parecia haver uma batucada dentro do móvel. Alguém pode dizer, “mas eram cupins”; neste caso, só se fosse a bateria da “Escola de Samba Unidos da Cupinlândia”. O fato é que não demorou muito para minha mãe passar o guarda-roupa para frente.

Interior afora, cansei de ouvir relatos dos mais velhos de luzes, aparentemente de velas, que percorriam alguns trechos pelo meio do pasto, sem que ninguém as levasse, e sumiam de repente. Nessas horas eu não ficava com medo, ficava sim com vontade de também ver essas luzes, mas lá nunca vi. Vim ver um fenômeno parecido, já em São Paulo, aos 9 anos, quando nos mudamos para a nossa casa nova, próxima à estação de trem de Artur Alvim (não era metrô ainda).

Voltávamos a pé da casa de minha avó, que morava uns três quilômetros distante, minha mãe, eu e minha irmã, com uns quatro anos. Por volta de 19 horas, tudo escuro, a energia ainda não tinha chegado (só os postes), a uns 500 metros de nossa casa, nós vimos uma luz se elevar à altura do poste, flutuar por alguns metros e descer. Isso, garanto, não foi fruto de minha imaginação. No interior, dizem que é “mãe de ouro” ou “mãe d’água”, mas ali não tinha ouro, nem água.  
    
Sempre pus em dúvida tais relatos, mesmo aqueles em que estive envolvido, mas acredito em quem disse que “há mais mistérios entre o céu e a Terra do que supõe a nossa vã filosofia”. Tenho amigos de todos os naipes, místicos, crentes, céticos, católicos, agnósticos, ateus e até “ateus, graças a Deus”. Sei de outros que até viram OVNI’s, eu, embora doido para ver, não tive essa oportunidade. Muitos desses meus amigos têm na ponta da língua explicação para tudo o que foi dito até agora. Eu prefiro acreditar, desacreditando ou como disse Dom Quixote “Non creo en brujas, pero que las hay, las hay”.

Desejo uma Quaresma sem sustos a todos!

Manoel Dorneles

3 comentários

  1. Lendo esse texto e vendo a imagem, foi impossível não lembrar de Elizabeth Montgomery, a feiticeira, no seriado dos anos 60 que eu assistia avidamente. Avidamente, poque essa feiticeira foi a musa de todas as minhas fantasias sanitárias!

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