Morrer dormindo 2

Estava eu noite dessas lendo na cama, e me preparava para desligar o Kindle e iniciar mais uma jornada de sono reparador, quando uma mosca deu um rasante e passou zunindo perto de meus ouvidos. Às portas da letargia, não reagi, e talvez por isso a mosca se sentiu encorajada a fazer outras três ou quatro manobras de risco.

Pensei: é sabido que as moscas não são aparelhadas para voos por instrumentos, e, portanto, basta apagar a luz que, por não mais enxergar o trajeto, ela vai sossegar. Dito e feito: ela deu mais duas passagens por perto, talvez confiando nas memórias recentes de voo, e depois se aquietou. Ou fui eu que adormeci, e não a ouvi mais zumbir.

Acordei de madrugada e a paz reinava no aposento. Só voltei a me defrontar com a mosca de manhã, ao me levantar: ela estava pousada placidamente ao lado de minha cama, contrastando a alvura da parede com seu corpo escuro; não cheguei a observar se seus olhinhos estavam fechados, mas tive certeza de que ela estava dormindo. Seus raides noturnos deviam tê-la extenuado.

Segui mansamente até a cozinha, peguei o mata-moscas que estava em cima da geladeira e, plaf!, num golpe só mandei-a para o céu das moscas, e vinguei, ainda que com algum atraso, o incômodo que ela me havia causado algumas horas antes.

O detalhe é que o benefício que ela recebeu sem saber, e talvez não estivesse ao alcance de seu raciocínio de mosca mesmo se soubesse, foi que teve a graça de morrer dormindo, um desejo, creio eu, de boa parte da humanidade. Que a morte é inevitável, todos sabemos. Mas o que acontece no momento em que ela chega, no instante em que temos de nos defrontar com nossa verdade maior, inevitável e definitiva, muitos – eu, inclusive – preferiríamos não estar acordados para ver.

A ideia é saber que morreu só ao acordar, se é que se acorda depois de morrer. A valer essa possibilidade, a esta altura a mosca já estaria voejando feliz pelos campos do Senhor e revendo os seus que partiram antes, sem preocupar-se com Detefon’s, SBP’s e Raid’s. O que aconteceu entre o momento em que zunia próximo ao meu ouvido e esse novo estágio feliz nos campos elísios ficará para sempre no limbo de sua consciência, livre de possíveis traumas.

Não é melhor assim? Afinal, nem todos – eu, inclusive – estaremos prontos para viver os últimos momentos sabendo que serão os últimos momentos.

(A primeira crônica com o título Morrer dormindo foi publicada por este blog em 2 de novembro de 2020, coincidentemente um Dia de Finados)

Marco Antonio Zanfra

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