Panc de carteirinha

Não faz muito tempo que o consumo das chamadas Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANCs) virou uma espécie de febre entre o público mais descolado. Esse saudável hábito tem sido incentivado pelos programas voltados ao universo agro e divulgado também por chefs de cozinha renomados. De minha parte, posso dizer que mantenho contato com essas plantas desde pequeno. Muitas delas, por sinal, fazem parte de minhas memórias gustativas, se assim podemos chamar.

Evidentemente, quem me passou esse conhecimento foi uma senhora nascida no início do século passado, ela também, desde sempre, uma expert nesse assunto. Estou falando de dona Jovina, minha mãe, de quem já contei algumas boas histórias por aqui. É provável que ela também herdou esses saberes de seus pais ou ancestrais, cujas origens, em certa medida, estão nas tribos indígenas ou mesmo no continente africano.

As PANCs, ricas em vitaminas e demais nutrientes, faziam parte da nossa paisagem muito antes da chegada do colonizador europeu com seus legumes e hortaliças. Quem já tomou um tacacá, como a cantora Joelma, sabe que o caldo leva na receita a mais famosa das PANCs brasileiras: o jambu. Apesar da intensa divulgação, a sigla continua desconhecida ao público dos grandes centros, mais afeito a comprar verduras e legumes só em hortifrútis ou supermercados. É assimilada mais facilmente por quem veio do interior, como é o meu caso.

Quando o assunto era cozinha, na linguagem dos mais jovens, minha mãe seria hoje tachada como ‘embaçada’. Não era o que podemos dizer uma cozinheira de mão cheia, mas na busca pelos ingredientes, ela abusava no quesito criatividade. Só bem mais velho, vim descobrir essa capacidade criativa de dona Jovina. Na roça, sem muitos recursos, ela sempre dava um jeito de arrumar no quintal o complemento do nosso arroz com feijão. E ficava muito bom.

Quem aqui já comeu serralha, uma das PANCs mais tradicionais? Minha mãe a preparava na salada, refogada ou no virado. Se não encontrava no terreiro, era socorrida por meu pai, que às vezes costumava trazer um maço, colhido no meio do cafezal? E taioba? Minha mãe picava suas folhas grandes e preparava um refogadinho de lamber os beiços. Não fica a dever nada à couve tradicional. É uma planta que cresce em regiões onde há muita umidade, no caso, perto da nossa bica d’água.

Ora-pro-nobis, outra PANC famosa, embora mais rara, também costumava aparecer lá em casa, seja na salada, seja refogada com frango. E tem a história do pé de abóbora. Toda casa da roça tem um esparramado pelo terreiro, que para minha mãe funcionava como uma espécie de quitanda. Além de aproveitar as abóboras mais tenras, ela usava as flores para a omelete e os brotos, conhecidos como cambuquira, para fazer um caldo delicioso com fubá, ovos e, eventualmente, carne desfiada.

Ao embarcar nas viagens gastronômicas de minha mãe, experimentei uma PANC, que com certeza muito poucos conheceram ou vão conhecer na vida: a Yuca. Me corrijam se eu estiver enganado. Planta originária da Guatemala, trazida para o Brasil com objetivos ornamentais, trata-se de um arbusto de tronco fino, encimado por um feixe de folhas duras e pontiagudas. Além de enfeitar as propriedades, é usada muitas vezes como cerca viva. Do meio das folhas, nasce uma espécie de buquê de flores brancas que podem ser consumidas em diversas receitas.

Como disse, desde pequeno conhecia a Yuca. Quando adulto, quantas vezes, ao levar minha mãe de carro pelas estradas de terra do interior, não tive de parar bruscamente a seu pedido. Então, eu descia e, munido de uma faca, puxava o pé de Yucca Guatemalensis ou Pata de Elefante (há várias espécies, mas só essa é comestível) e cortava o cacho de flores brancas. Em casa, ela separava as flores, lavava e refogava. Na boca, o gosto lembrava repolho cozido, só que mais suave.

Minha infância ficou bem lá atrás, dona Jovina se foi deste mundo há uns 17 anos, mas como dito, os sabores que ela proporcionou permanecem comigo. Se ela não foi “une cordon-bleu”, sempre fez o trivial, foi “une grande gourmande”. Sem dúvidas, experimentou nessa vida, com sabedoria, tudo a que tinha direito.

Manoel Dorneles

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