Não sei se já contei aqui como conheci minha primeira mulher, com quem fui casado por quase 30 anos. À época, trabalhava na revisão da Folha de S. Paulo, das 19 horas à 1 hora da madrugada, e ela, ainda estudante de comunicação, era conferente de anúncios no período vespertino. Nos vimos pela primeira vez, certo dia, à tarde, quando tive que ir até o RH para resolver alguma questão sobre o salário ou férias. Eu descia as escadas do primeiro andar e ela aguardava o elevador no saguão. Trocamos olhares, uma, duas, três vezes, como era comum naquele tempo, e ficou nisso.
Algum tempo depois, para minha agradável surpresa, a vi de novo, à noite, quando ela entrou na sala da revisão do jornal para bater o cartão de ponto. Desnecessário dizer que esse nosso inocente flerte resultou em namoro, casamento, até que morte nos separou, essas coisas. No entanto, de uma coisa tenho certeza: esse tipo de encontro seria praticamente inviável nos dias atuais. Aliás, essa conclusão nem é minha, é de meu filho, hoje com 27 anos, com quem converso muito sobre os relacionamentos modernos.
Eu faria o mesmo trajeto, através do saguão, poderia até observá-la de relance, mas ela, provavelmente, nem me veria, entretida com seu celular. Nestes tempos modernos, são mais importantes e convenientes as conversas com um rapaz ou uma moça distante, que talvez nunca a pessoa tenha visto ou verá, do que dar um “match” com alguém das proximidades. Claro, naqueles idos não se dizia match, mas condição, oportunidade, chance, sei lá.
Volto um pouco mais ao tempo de minha juventude, na época do footing, geralmente, praticado nas cidadezinhas do interior, aos sábados e domingos à noite. Eu mesmo participei de muitos. Era ocasião em que as mocinhas costumavam circular pelo jardim ou largo da matriz, enquanto eles, reunidos num grupinho, fumavam e apreciavam o movimento. Quando os olhares se cruzam, o casal se desgarra de seus pares e “some” na escuridão para uma conversa, digamos, mais reservada. Some nada, sempre tem um irmão mais novo ou uma tia solteirona de olho para evitar quaisquer arroubos.
Hoje em dia, olhares dificilmente se cruzam. Os matches se dão pelos aplicativos de namoro ou paquera, como Ashley Madison, Bumble, Badoo e o Tinder, é claro. Às vezes, funciona, como ocorreu com um casal vizinho meu, em São Paulo, que se conheceu pelo Tinder e, aparentemente, vive muito bem junto, obrigado. Os cinquentões ou mais também estão bem servidos nesse quesito por sites como o Coroa Metade, cuja proposta é dar uma oportunidade de relacionamento a esse público, digamos, mais maduro.
O pior (e o mais deprimente) é que muitos jovens, e adultos também, se dão satisfeitos com o chamado namoro ou sexo virtual. A personagem de Tatá Werneck, na recente “novela das 8”, mostra muito bem como a coisa funciona. É fato que muitas moças ganham uma fortuna, hoje em dia, apenas com a exibição do corpo ou parte dele para as câmeras dos celulares, e isto lhes basta. Parece até que estão condenando os homens, pelos quais foram subjugadas em épocas passadas, a um eterno voyeurismo.
“Pai, numa tarde de sábado ensolarada, eu passei mais de duas horas na praia, sentado, a observar pessoas mais jovens que iam e vinham. Ninguém parecia interessado ou interessada em olhar para os lados, demonstrar curiosidade, que fosse, por alguém ao redor, paquerar enfim”, conta meu filho. Há quem atribua esse desinteresse, descaso ou distanciamento à pandemia recente. As pessoas, forçadas a ficar em casa, perderam a mão, o costume, o jeito de se relacionar. Descobriram que, muitas vezes, é melhor ficarem sozinhas do que mal acompanhadas. Pode ser.
O fato é que, independentemente do objetivo, as pessoas se tornaram mais resistentes, mais arredias, ao contato com o outro. Num universo mais amplo, mundo a fora, o brasileiro continua com a fama de ser aquele povo habituado aos abraços mais efusivos, aos beijinhos no rosto, ao toque, o que ainda causa espanto e espécie. Somos obrigados a concordar, mas, temos que convir, numa escala bem inferior a que estávamos acostumados.
No caso específico da paquera ou a falta dela entre jovens, uma outra causa apontada (e neste caso, bem mais grave) pode ser o excesso de remédios. Eles são receitados e consumidos por uma grande parte de adolescentes e jovens para combater os efeitos da ansiedade e da depressão (males do mundo moderno), o que não era tão comum ou perceptível 20, 30, 40 anos atrás. Se perguntarmos a qualquer médico, certamente, ele vai negar de pés juntos, mas está evidente que algumas substâncias presentes nesses remédios provocam a perda da libido.
E sem a libido, perde-se o tesão, a vontade de estar com outro. É alguma coisa como os relacionamentos modernos, que escorrem pelo mesmo ralo por onde se esvai o amor líquido de que trata Zygmunt Bauman. Aquele amor descartável, descompromissado, que pode ser trocado em qualquer esquina por outro, que talvez tenha “algo melhor” a oferecer.
Manoel Dorneles
Contando História
O que o tempo altera e vira história
Contando História
O que o tempo altera e vira história
Excelente texto! Corrente, bem escrito. Descreve literalmente o que se vive hoje. Mudança dos tempos? Estamos velhos e olhando as novas gerações com outros olhos? Não sei?
Espero que os olhares e os toques não se percam, caso contrário, logo menos, estaremos vivendo como a tão propagada Inteligência Artificial.
Interessantes as ponderações. Mas o melhor mesmo foi lembrar da Silvana. E, por extensão, lembrar do casamento de vocês. Quando o saudoso Ademir e eu saímos para comprar vodca, porque na sua festa não serviam bebida alcoólica!
Desculpe, vcs nao foram na fonte certa. Lembro que meu sogro, o falecido seo Oswaldo, levou várias garrafas de uísque pra festa
E deve ter escondido só para os mais chegados.