Iguaria ou heresia

Flávia Boggio, colunista da Folha, mais uma vez me empresta inspiração para um tema de crônica, ao indicar um cardápio de tretas possíveis para animar as festas familiares de fim de ano. Um dos itens desse cardápio é a eterna discussão envolvendo a colocação ou não de uvas passas no arroz.

“Entra ano, sai ano e a polêmica é sempre a mesma: colocar ou não uva-passa no arroz? Enquanto alguns apreciam, outros preferem a desnutrição a comer a fruta desidratada, enquanto passam a noite natalina reclamando. Aí a briga familiar é certa.”

Pois eu fiquei sabendo agora que essa discussão pode ter uns quatro mil anos. É claro que naquele tempo não havia ceia de Natal – porque o personagem a inspirar a data ainda nem havia nascido – mas a uva-passa já era conhecida. E, pasmem!, com autossuficiência de produção: ela se desidratava por conta própria, após cair de madura.

Ela não foi, pois, inventada, mas descoberta. E os antigos perceberam que, com sua estrutura original livre de líquidos, ela se conservava durante muito mais tempo. Não há estudos indicando quando algum ser humano iluminado resolveu acrescentá-la ao arroz.

Este não é, porém, o único alimento conspurcado pela uva passa. Dando uma zapeada rápida pelo Google, descobri outras onze receitas que levam a fruta: trouxinhas de frango ao curry e passas; torta de queijos e passas; suflê de espinafre e passas; rolê de peru com farofa de frutas; arroz festivo; rondelli caseiro de ricota, nozes e passas; farofa adocicada de linguiça; empada de carne e uva-passa; torta de presunto, creme de leite e uva-passa; salpicão de frango defumado; salada tropical com nozes e uvas-passas.

Parei por aí, mas há mais, muito mais. Gostaria de experimentar todas as receitas. Sem as passas, por favor.

(Para não dizer que não aprecio nada com as uvas secas, há muito tempo, quando eu ainda bebia, gostava de um sorvete de passas ao rum; mas não deve ser difícil aos meus leitores descobrirem que não eram exatamente as passas que me atraíam…)

Em minhas andanças googlianas, descobri também que as passas eram personagens bíblicas, no Novo Testamento, mas de um ponto de vista erótico. No livro Cântico dos Cânticos, há um poema de uma mulher dedicado ao amado. Um trecho exalta o marido, dizendo que “seu fruto é doce ao meu paladar”. E depois de destacar que “faz-me entrar na taberna, seu estandarte sobre mim é amor”, o pede que a refaça “com bolos de uva-passa”, porque está “doente de amor”.

Outra passagem de cunho sexual está no livro de Oseias, quando Deus repreende aqueles que “se voltam para outros deuses” envolvendo-se com prostituição e adultério. No texto, estes “gostam de tortas de uva-passa”.

Posso estar enganado, ou ter a visão ofuscada por uma certa predisposição contra a uva-passa, mas creio que as uvas in natura teriam muito mais apelo sensual do que aquelas outras. É muito mais apetitosa e excitante uma uva tenra, caudalosa, devassa, lúbrica do que aquele montinho escuro pré-chupado. Embora na minha idade meus pecados em relação às uvas estejam mais próximos da gula do que da luxúria, meu passado me dá lugar de fala.

Mas ficamos assim: quer me desejar um bom Natal, inclua as uvas passas fora do cardápio. E sejamos todos felizes.

Marco Antonio Zanfra

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