Levo na bagagem somente o que ouso e posso carregar; o resto são pérolas, palavras ao vento, que não dou aos porcos. Eles que cacem seu próprio alimento… Nada sei quanto aos demais, mas eu cansei. Basta de dar com a cara nos muros, de dar murros em ponta de faca. Co’as mãos cheias de furos, passei a régua, peguei “os trem”, arrumei mala e cuia e fui. Não levo desaforo, melindres e que tais, tampouco deixo saudades, veleidades, vaidades. Vou de peito aberto, a despeito do tempo, contra o vento, sem lenço, nem documento. Contraditório, viajo na contramão da contradição. Se me param, digo que não sou eu, não sou só eu. Sou um fantasma do que sempre fui. Nada de nada mesmo. Tinha algumas convicções, a esmo, poucas é verdade, mas elas nem a mim me convencem mais. Só levo o que posso carregar, o sobrepeso, o que não consigo, descarrego em cada encruzilhada. Faço figa, cruzo os dedos, acendo uma vela, com uma fita amarela, rezo um Padre Nosso. Pelo Sinal da Santa Cruz, ando curvo, turvo, em linhas retas. As tortas devorei ontem no jantar. Durmo ao relento, como um rebento, coberto de estrelas. Elas piscam que piscam, sonho com anjos toscos, tortos, desmilinguidos, caídos. Arcanjos, querubins e um ser afim de mim. Não confio em telhados de vidro, não confio em telhado nenhum. Que atire a primeira pedra (neles) quem nunca pecou. Eu já, setenta vezes sete vezes. Fui perdoado e voltei ao pecado. Tenho penas a expiar e tenho pena de quem, mal-informado, me segue. Não sou santo, nem o diabo que o carregue. Não levo mapa, não tenho roteiro, dou minha cara à tapa; não levo mapa, não tenho roteiro, dou minha cara a tapa. Às vezes me pedem passagem, outras esmolas, não dou. Tenho o urgente e o suficiente pra viagem, nem sei quando vou chegar, se vou chegar. Ando em círculos, rumo às terras de Nárnia. Lá sou amigo de Aslan, o rei leão. Soprei os dentes dele, o vento levou. Vou em frente, continuo sem noção, sem direção. Tenho uma vaga lembrança, no peito a esperança, traço o destino no ar. Chovia na minha horta no verão. O sol secou a pimenteira, a roça, o pomar. Tenho sérias dúvidas e dores no peito, deve ser aorta. Sei nada quanto ao futuro, mas quem quer saber? No meu país quem quer o saber? Se deixam guiar. Ladrões, aventureiros, contrabandistas, políticos, míticos, líderes de ocasião. Em Nárnia, não. Tomam o destino nas mãos. Vou pra lá como cheguei ao mundo, uma mão à frente, a outra também. Não sigo, não tenho seguidores, não abaixo a cabeça, não digo amém. Escorrem de minha boca palavras de alto calão, ninguém quer me ouvir. Reclamei ao vigário, ao bispo, ao papa, ao grão vizir. Semeio no deserto e acumulo pedras no alforje e nos rins. Se choro, não sou consolado, se consolo, alguém vai chorar por mim. Faço ouvidos moucos, ao som que rola, tarefa pra poucos. D’outra feita, me pego a cantar canções de ninar gente grande, conversa pra boi dormir, até a aurora boreal. Os meios justificam os fins. E os fins não têm justificativa nenhuma, apenas encerram o assunto.
Contando História
O que o tempo altera e vira história
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