Minha sogra se foi e deixou uma cachorrinha, de raça e idade indefiníveis, para tomarmos conta. Na verdade, não foi com a partida dela que assumimos a tutela da bichinha: desde que dona Mithiko fraturou o fêmur, um ano e oito meses antes de falecer, ela ficou enfiada numa cama hospitalar, e os tratos com sua mascote já estavam por nossa conta.

Alta conta, diga-se.

Porque Sasha, a cadelinha, também é do tipo ‘portadora de necessidades especiais’, e não faz praticamente nada sem nossa ajuda. Por algum motivo, sua perna traseira esquerda está paralisada e ela só consegue andar, quando consegue, saltitante como uma lebre velha – com muito menos velocidade e frequência, se a imagem não deixou isso claro.

Mesmo nas poucas vezes em que se levanta para fazer xixi, por exemplo, ela depende de nosso apoio moral. Temos de pegá-la no colo, levá-la até um espaço sem barreiras, certificarmo-nos de que o trem de pouso posterior – formado pelas duas patas entrelaçadas – está sustentando a fuselagem e largá-la por alguns momentos, para que se alivie.

E aí começa a operação retorno. Ela não sobe degraus ou rampas, não anda sobre tapetes, não atravessa o trilho da porta de correr – que virou uma espécie de mata-burro para ela – e às vezes chega a perder o rumo e ficar parada no meio da cozinha, olhando para nós com cara de pedinte. O único jeito é carregá-la em direção à sua cama. Nesse ponto, a vantagem é que ela é de raça (ou falta de) pequena.

A desvantagem é que ela é chata. Irritante. Tem um latido que arde nos ouvidos. Acha que é prioritária nas atenções e se manifesta por latidos (que é, afinal, o que os cães fazem). Fui obrigado, mais por irritação do que por curiosidade intelectual, a traduzir o que cada latido significa:

Um latido agudo – água

Dois latidos menos agudos, em sequência – xixi (ou correlato)

Sequência de latidos menos agudos – comida

Lamúrias em volume crescente – perdeu as cobertas ou caiu da cama e está com frio

Falta descobrir ainda alguns significados, de algumas variáveis. Penso, com mais frequência que meu senso de humanidade admitiria, que uns querem dizer “gostaria de levar uma sapatada na cabeça” ou “adoraria ser pendurada pelo pescoço”. Mas ainda não tenho certeza, e devo admitir, não sem um travo de desesperança, que ainda terei tempo para aprender.

Devo dizer que cuidar de uma cadelinha aleijada não era nosso ideal de vida. Principalmente porque não era escolha nossa, ela veio no pacote. Como era muito ligada a minha sogra, chegamos a pensar – não seria exagero usar o termo ‘desejar’ – que as duas teriam um pacto: quando uma fosse, a outra iria em seguida, não importando em qual ordem de partida. Mas dona Mithiko foi, e ela ficou. Sasha parece ‘imorrível’.

Aliás, começo a pensar que, se houver alguém disposto a carregá-la no colo, é muito provável que ela esteja presente no meu velório.

Atualização: Este texto foi escrito em 25 de agosto. Quarenta e dois dias depois, Sasha acabou indo encontrar-se com dona Mithiko. Com distúrbios neurológicos, dores e deterioração física acentuada, por causa de seus quase vinte anos de vida, ela foi eutanasiada em 6 de outubro. Um alívio para ela e para nós, que passamos as três semanas anteriores levantando três a quatro vezes durante a madrugada para atender a seus latidos e gemidos.

Marco Antonio Zanfra

3 comentários

  1. Ô judiação ❤️ ela ja tinha esses problemas antes da D. Mithiko morrer? O que os veterinários falavam? Ela devia sentir demais a falta dela pobrezinha

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