Trem bão demais da conta, sô!

A lista é extensa. O baiano Raul Seixas esperou o “Trem das 7”, Adoniram quase perdeu o “Trem das Onze”, Roupa Nova foi “Seguindo o Trem Azul”, Almir Sater atravessou com o “Trem do Pantanal”, os gaúchos Kleiton e Kledir foram de “Maria Fumaça”, Villa Lobos voltou ao Interior com o “Trenzinho Caipira” e o mineiro Milton Nascimento subiu de trem o “Morro Velho” chegando à estação dos “Encontros e Despedidas”. A propósito, mineiro é doido por um trem, não apenas o trem de ferro, como se dizia antigamente, mas qualquer coisa cujo nome não lhe ocorra na ocasião.
 
Eu, que não sou mineiro, embora tenha nascido bem perto da divisa entre São Paulo e Minas, sempre fui maluco por trens, desde pequeno. Meu sonho era ganhar no Natal ou brincar com aqueles trenzinhos eletrônicos iguais aos dos presépios, mas a grana lá em casa era muito curta. Hoje, gosto de ler tudo que me cai nas mãos sobre o assunto.

Leio desde roteiros dos chamados trens turísticos, os poucos que ainda sobraram, até sobre promessas de novas linhas ferroviárias Brasil afora, nunca cumpridas pelos nossos governantes. Não apenas leio a respeito, mas também embarco em alguns, quando tenho oportunidade. Ao longo de minha vida, juntei boas experiências vividas a bordo de um vagão.

O trem mais próximo da fazenda onde nasci chegava até a cidade mineira de Poços de Caldas, do outro lado da divisa. Tive o prazer de conhecê-lo, ali pelos meus 9, 10 anos, quando minha família migrou para a capital paulista. Havia o ônibus, mas o trem era o meio de transporte mais barato para irmos até lá visitar meus parentes, por ocasião das férias escolares. Íamos minha mãe, eu e minha irmã, seis anos mais nova do que eu.

Saíamos da Estação da Luz, em São Paulo, em direção a Campinas, onde fazíamos uma baldeação. O trem de bitola larga era trocado pelo de bitola estreita da Companhia Mogiana, que se dirigia a Mococa. Em Aguaí, cidadezinha do lado de São João da Boa Vista, outra troca. Deixávamos o ‘comboio’ da Mogiana e embarcávamos num outro ainda menor, puxado por uma Maria Fumaça, que subia lentamente a serra em direção a Poços de Caldas.

A viagem durava o dia inteiro, mas para mim era uma festa. Era só um molequinho a percorrer o trem de cabo a rabo, para o desespero de minha mãe. Mas, à época, eu tinha juízo. Gostava de ficar naquela “varandinha” do vagão, onde podia apreciar a paisagem e receber o vento no rosto. Nem me incomodava com a fumaça e a fuligem da chaminé da locomotiva, que vinham no pacote.

Quando terminei o primário, meus pais me levaram a uma outra viagem ferroviária. Depois do embarque na Estação da Luz, descemos a Serra do Mar rumo a Santos. Além da viagem insólita, era a primeira vez que eu, ainda um caboclinho recém-chegado da roça, via o mar. Àquela época, a máquina a diesel levava os vagões até a estação de Paranapiacaba, no topo da Serra. Lá, separados de três em três, eles eram tracionados por oito quilômetros pelo sistema funicular, por um vagão chamado “Serra Breque”, até a estação de Raiz da Serra, já em Cubatão. Após a recomposição, o trem concluía a viagem na Estação Valongo, em Santos.

Mais tarde, ainda nos meus tempos do cursinho, arrumei uma namorada carioca. Véspera de um feriado, tentei embarcar no famoso “Trem de Prata”, noturno, com destino ao Rio de Janeiro, mas não consegui. Não me lembro se por falta de passagem ou porque eu estava sem dinheiro mesmo. O jeito foi esperar pela manhã e pegar o “Trem Baiano”, que parava em todas as estações entre São Paulo e Rio.

O apelido conferido pela “aristocracia paulista”, tinha dupla conotação. Por um lado, porque, em Entre Rios, já em terras fluminenses, a composição fazia uma conexão com um outro trem, que cruzava Minas Gerais e chegava à Bahia; por outro, por puro preconceito mesmo: era a condução possível aos menos favorecidos e dos “baianos” que migravam para São Paulo atrás de melhores condições de vida.

A questão é que o nosso trem partiu às 7 da manhã da Estação da Luz, em São Paulo, e quase 12 horas depois, ainda estava em Cruzeiro, no Vale do Paraíba. Ainda faria paradas em diversas estações, sem falar nas da famosa “Baixada Fluminense”. Pelo andar da locomotiva, com medo de chegar numa cidade, que eu pouco conhecia, após as 22 horas, desci e tomei um ônibus até o Rio de Janeiro. Detalhe: ganhei só duas horas.

Para compensar essa jornada frustrante, nos tempos da faculdade, eu e um grupo de amigos fizemos uma bela viagem de ida e volta, pela Fepasa, até Bebedouro, no norte do estado de São Paulo. Era a cidade de um de nossos colegas de classe, e nós decidimos comemorar a passagem de ano lá. Naquele tempo, estou falando de meados dos anos 1970, a malha ferroviária de São Paulo era a mais extensa, organizada e movimentada do País. Infelizmente, dela só sobrou sucata.

Minto, na verdade, sobraram os trilhos utilizados hoje pelas empresas de logística, que movimentam carga até os portos de Santos, Paranaguá e outros. Sobre esse tema, anos mais tarde, quando trabalhava numa revista voltada ao setor de transportes, fui convidado para uma viagem de trem bastante curiosa. O objetivo era mostrar a viagem multimodal do trigo colhido no Paraná até os moinhos localizados em Jundiaí e outras regiões de São Paulo.

Escolheram para nós, um grupo de jornalistas de diversos veículos, o mesmo “Trem da Alegria” usado no passado pelo ex-governador Paulo Maluf para o seu governo itinerante. Confortável, tínhamos comida e bebida à vontade e até um vagão panorâmico onde ficava uma espécie de sala de estar. Viajamos da capital até Panorama, cidade paulista nas barrancas do rio Paraná. No porto local, chegavam as barcaças carregadas de trigo, que era despejado nos vagões ferroviários.

A multimodalidade se completava, quando o trigo era direcionado para as carretas e levado de Jundiaí para as demais localidades. Embora já não houvesse mais o transporte de passageiros, as estações, ainda bem conservadas, reuniam um número considerável de pessoas para matar o tempo ou a saudade, sei lá. Quando viam o nosso trem passar, com aquele bando de “desocupados” a bordo, comendo e tomando cerveja, eles nos vaiavam sem dó nem piedade. Imaginavam, talvez, que fôssemos os mesmos políticos dos tempos do Maluf, atrás de mordomias e votos.

Em minha primeira viagem ao exterior, tive a oportunidade de percorrer de trem um dos trajetos mais fantásticos da Europa. Meu destino final era Cannes, na Riviera Francesa, mas meu voo ia até Milão. Na estação ferroviária local, pegamos a composição para a França. O trem serpenteia boa parte da Ligúria (a riviera italiana), passando por Gênova, San Remo, Portofino e outras cidadezinhas italianas, que só vemos em filmes da máfia. Quando os túneis permitem, é possível desfrutar de uma paisagem maravilhosa, inclusive em Mônaco e Nice, antes de chegarmos a Cannes.

Após uma semana na Riviera, embarcamos no TGV com destino a Paris. Segunda classe por economia, mas com mesmo conforto da primeira. A mais de 300 quilômetros por hora, é quase impossível contemplar a paisagem. A impressão, às vezes, é de que estamos em um avião, só que muito mais rápido.  
 
Em outra estada na Europa, viajei de Nice a Amsterdã de avião, mas com um compromisso em Nuremberg, na Alemanha. Depois de alguns dias na capital holandesa, tomei um trem com destino a Frankfurt. Não era de alta velocidade, a viagem dura quatro horas.  Imaginem vocês que os trilhos acompanham o rio Reno. Cruzamos Dusseldorf, Colônia, Bonn até chegarmos a Frankfurt, onde se faz a conexão para Nuremberg. Pela janela, é possível observar a belíssima paisagem com o curso do rio e acima os castelos enfileirados no alto das montanhas.

No Japão, tive a oportunidade de experimentar o famoso trem-bala deles. Tínhamos ido de ônibus de Tóquio a Hakone, onde tivemos acesso ao Monte Fuji. Na volta pegamos o Shinkasen, para Kioto, que fica ao lado de Osaka, de cujo aeroporto embarcaríamos para o Brasil. Embora pareça mais um avião a jato, também seja limpo, superconfortável e pontual, não parece mais rápido do que o francês. A paisagem é bem mais nítida, a começar pelos incontáveis campos de chá e arroz. Curioso é que eles plantam em todo lugar, inclusive, em terrenos baldios das cidades ao longo da ferrovia.

Entre idas e vindas, acredito que consegui, nestes meus anos de vida, prestar a devida homenagem ao transporte ferroviário e também tenha usufruído dele, na medida do possível. Pena que tenha ficado tão restrito no Brasil. Ainda tenho planos, nesta encarnação, de percorrer a famosa Vitória-Belo Horizonte ou vice-versa, a ferrovia da Serra da Graciosa, no Paraná, e a que liga São Luís a Marabá e tantos outros roteiros que ainda resistem no País.  Antes até achava engraçado um punhado de marmanjos, reunidos em exposições de trenzinhos elétricos, hoje entendo. Quem experimenta desse trem não esquece nunca mais!

Manoel Dorneles

2 comentários

  1. Como o máximo de lonjura a que cheguei, de trem, foi, de um lado, a Jundiaí e, de outro, a Paranapiacaba, pouco teria a acrescentar. Além, é claro, de minha experiência internacional: já fui de Hekinan a Nagóia e de Shiojiri a Matsumoto.

  2. E acabei de lembrar: você andou no ‘shinkansen’, mas eu não cheguei a tanto. Viajei de ‘tokyu’, que é o semi-bala, de Shiojiri a Nagóia, em nossa volta ao Brasil. Parecia que estava num barco, por causa do balanço, e acabei passando mal. O interessante no trajeto é o povo que se posta à margem da via para fotografar o trem passando numa curva.
    De Nagóia, fomos de ônibus a Osaka, aeroporto de Kansai, para um voo de 24 horas até Guarulhos num Douglas da Vasp.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *