Rescaldo do Joelma

A Folha de S. Paulo do dia 2 de fevereiro trouxe reportagem sobre a cobertura do terrível incêndio do edifício Joelma, no centro de São Paulo, 50 anos atrás, que deixou quase 200 mortos. O primeiro jornalista a chegar ao local, juntamente com a repórter Ivani Migliaccio, da Agência Folhas, foi o coordenador deste blog, companheiro Nereu Leme, da Folha de S. Paulo. Mal tinham digerido o café da manhã, e procuravam ainda se inteirar da situação, quando viram assustados alguns corpos a cair do edifício em chamas.

A repórter passou mal diante da cena e Nereu a levou a um bar próximo para que se recuperasse. Compreensível, afinal nem todos os jornalistas ‘têm estômago’ para lidar com essas situações. Eu me incluo entre eles, diferentemente de bombeiros, médicos e demais integrantes de equipes socorristas. Claro, a reportagem policial, vez ou outra, nos levava até a periferia da Grande São Paulo, onde alguém acabara de ser morto a tiros ou a facadas. Isso, sem falar de corpos encontrados, putrefatos, após vários dias na mata.

Enquanto lia a reportagem (à época, estava no primeiro ano de faculdade), lembrei de alguns casos “escabrosos”, não como o do incêndio, evidentemente, de meu início no jornalismo, na Agência Folhas, e também no Diário da Noite. Em um deles, eu mal chegara para o plantão da madrugada do dia 9 de fevereiro de 1978, pouco antes da 1 hora, quando fui informado da queda de um Bandeirantes, no final da noite anterior, na região de Agudos, divisa com Bauru.

O avião tinha caído e explodido ao tocar a copa dos eucaliptos da Reflorestadora Monte Verde, que mais tarde passou para a Duratex. Havia 16 passageiros a bordo, além de dois tripulantes. Saímos antes das 4 horas, eu, o fotógrafo e o motorista do fusquinha amarelo da Folha, que pisou fundo na Rodovia Castelo Branco vazia.

Chegamos ao local com a névoa da manhã. Pouco antes, o pessoal da Aeronáutica, junto com o Corpo de Bombeiros, já havia recolhido os pedaços de corpos maiores, além de partes grandes da fuselagem. Mesmo assim, ainda se via muitos destroços menores pendurados nas árvores, inclusive braços, mãos e pedaços do que parecia ser o bofe ou o fígado das vítimas.

Passamos boa parte da manhã, na tentativa de apurar as causas do acidente e a identificação das vítimas, ao mesmo tempo em que enviávamos os relatos para a Agência Folhas e, no meu caso, também para o Diário da Noite. Por volta do meio-dia, mesmo com o cheiro de carne humana defumada, saímos dali e fomos até Agudos almoçar. Naquele dia, não tive coragem de pedir um filé com fritas.

Em outra ocasião, ainda na Agência, mas no horário vespertino, fomos cobrir um acidente na Avenida Bandeirantes, próximo do Aeroporto de Congonhas. Uma Brasília com cinco ocupantes entrou na traseira de um caminhão de gás e pegou fogo. Não sei se os passageiros estavam com o cinto de segurança – já era obrigatório, mas quase ninguém usava naquele tempo –, o fato é que todos morreram carbonizados em seus respectivos assentos. Era uma visão dantesca e curiosa: o carro com os cinco corpos torrados e eretos sobre os bancos.

Nessa época, não lembro se pela Agência Folhas ou pelos Diários, também fui escalado cobrir um homicídio em uma obra, no bairro da Saúde, zona sul paulistana. A cabeça totalmente separada do corpo, a gente vê em filmes, mas, na vida real, chega a ser uma cena mais curiosa do que assustadora. Ao chegar no local, uma edícula nos fundos da casa, vimos pela janela uma cabeça pendurada pelos cabelos compridos na parede e o corpo sobre uma cama de solteiro.

Ao que consta, dois operários brigaram e um deles decepou a cabeça do outro com um facão e a pendurou. Sem testemunhas.  Não deu para cravar, mas uma marmita vazia, cujo conteúdo estava jogado sobre o pescoço da vítima, talvez indicasse que eles teriam se desentendido por causa de comida. Nesse dia, tampouco consegui comer qualquer prato, cuja mistura fosse carne ou mesmo arroz e feijão.  

Situação de tirar o apetite de um alimento muito apreciado foi vivenciada por um fotógrafo, amigo meu. Ele foi escalado para cobrir um homicídio no litoral de São Paulo, mais precisamente em São Vicente. Após o assassinato, o corpo foi jogado no mar, amarrado a uma pedra, na altura da antiga Ponte Pênsil. Após extensas buscas, alguns dias depois, os bombeiros conseguiram encontrar o cadáver, que foi içado com o auxílio de uma rede. Agarrados ao corpo estavam dezenas de camarões, reunidos no afã de também fazerem o banquete deles.

Ao ouvir o relato dele, prometi a mim mesmo nunca mais comer camarões na vida. Mas já esqueci da promessa.

Manoel Dorneles       

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