Por terra, “mar” e ar

Em 1986, quando trabalhava numa assessoria de imprensa e de repórter numa revista voltada ao transporte rodoviário de carga, recebi o convite de uma grande transportadora estabelecida em São Paulo. O intuito era mostrar para seu público o trajeto de uma carreta de São Paulo até Manaus. Apesar da economia instável no País, a Zona Franca de Manaus efervescia. Eram caminhões e caminhões carregados de insumos eletrônicos para lá, e outro tanto, até as tampas, de volta com os equipamentos montados para o consumo aqui embaixo.

Nessa época, o Brasil acabara de sair de uma ditadura militar e ensaiava os primeiros passos rumo à democracia. Eleito pelo colégio eleitoral, Tancredo se foi desta para melhor antes da posse e abriu caminho para D. Sarney I. O até então ‘imperador’ do Maranhão abusava da paciência dos “brasileiros e brasileiras”, com um plano econômico por semana, cada um mais mirabolante do que o outro. No plano legislativo, sob a batuta do maestro Ulysses Guimarães, o Congresso Nacional elaborava a nova Constituição, que viria a ficar pronta em 1988.

Já o nosso caminhão, um novíssimo Mercedes Benz 1932, quem comandava era o ‘piloto’ Andrade. Viajamos na boleia eu e Silvana, minha primeira esposa, que à época trabalhava como fotógrafa. O 32 do modelo significa a capacidade máxima de tonelagem da carreta, mas a nossa, por se tratar de um ‘teste’, levava a metade disso. Era uma espécie de licença para o nosso motorista, que ‘arrepiava’ sem dó nem piedade nas retas da Belém-Brasília. Em algumas delas, com mais de 100 quilômetros, quem se arrepiava de medo éramos nós.

Nossa viagem teve início no galpão da empresa, na Vila Maria, em São Paulo. Dormimos a primeira noite em Frutal, Minas Gerais. O Andrade na cabina mesmo, enquanto seus caronas se arrumavam no motel, desses bem mequetrefes de beira de estrada. Como ele não foi avisado que éramos marido e mulher, imagino que achou meio estranho, a princípio, que dormíssemos juntos. Não demorou muito para lhe contarmos a verdade.

Próximo pernoite, Brasília. O dia seguinte foi reservado para uma sessão de fotos do bruto bem em frente do Congresso e do Palácio do Planalto. Da capital federal, pegamos a BR-010 (Belém-Brasília), a mais de 100 por hora, e entramos pelo estado de Goiás para mais uma parada em Araguaína. Bom lembrar que ainda não existia o estado de Tocantins, criado só em 1988.

Araguaína, um município extenso, tinha então o maior índice de bois por quilômetro quadrado do País. Era a verdadeira “Capital nacional do boi”. Faltava carne nos açougues do Sul e Sudeste, pois, segundo alguns, os criadores de gado daqui, descontentes com os baixos preços oferecidos para seus produtos, esconderam os rebanhos naquela região. Consta até que o então recém-eleito governador paulista, Orestes Quércia, tomou à frente de uma dessas ‘caçadas’ em busca dos bois escondidos.

Nosso destino agora é o Maranhão que, em contraponto à propalada opulência da “Sarneylândia”, era um dos estados mais pobres do Brasil. Entramos por Açailândia, por onde passa a Ferrovia Norte-Sul, ainda em construção. Miséria para todo lado. Fizemos pouso no município de Imperatriz, o mais desenvolvido do estado, depois de São Luís. A vegetação local intermedia a região do Cerrado e a floresta amazônica, no sul do Pará. Triste de ver, praticamente, um forno de carvão a cada quilômetro.

Ananindeua, onde fica a sede da Superintendência da Polícia Rodoviária do Pará, faz parte da Grande Belém. Depois de uma entrevista sobre os problemas enfrentados pelos policiais, principalmente com tráfico e roubo de carga, chegamos à capital paraense. Fomos direto ao porto, onde Andrade deixa a carreta, que seguiria em direção a Manaus. Em seguida, engata uma outra, carregada de aparelhos eletrônicos, para o retorno.

Permanecemos dois dias na cidade e, em seguida, foi a nossa vez de embarcar para a capital amazonense. O propósito da nossa matéria não prevê um barco de turismo convencional, mas a mesma embarcação que empurra a balsa com as carretas. A nossa leva 15 delas, além cinco caminhões de congelados, carregados de maçãs, frangos e carne de carneiro. Ao contrário dos demais caminhoneiros, eles levam seus veículos completos até o destino.

Eu e minha fotógrafa somos convidados do capitão, com direito a um dos dois camarotes existentes, o outro é dele. Os demais membros da tripulação dormiam no porão. Os cinco dias previstos de viagem viraram nove. Nossa embarcação ficou mais pesada, pois no meio do trajeto, tivemos que assumir outra balsa carregada com mais 20 carretas, cujo ‘empurrador’ quebrou.

Os primeiros dias, Amazonas acima, por entre as corredeiras e os canais abaixo do Marajó, foram tranquilos. Vira e mexe, nossa embarcação era abordada por canoas ocupadas por meninos ribeirinhos, que vinham nos oferecer assai, camarão seco e outras frutas locais. O camaradinha, apenas seis anos, sete anos, subia no convés e, na volta, mergulhava nas corredeiras, como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo. Quer dizer, pra ele era…

No quesito alimentação, o cozinheiro até preparava uma comida bem honesta. A princípio, tínhamos peixe e até leite e papaia no café da manhã. Mas o estoque acabou logo. Ali pelo terceiro, quarto dia, era só café e pão duro e, no almoço, arroz, feijão, carne e farinha. Minha companheira de viagem não aguentava mais. Descobriu até que o nosso chef tinha as unhas compridas e sujas, e os cabelos cheios de óleo.

Mas a nossa salvação chegou, diretamente do Sul. Fizemos amizade com os cinco carreteiros da Marfrig, que levavam os congelados e preparavam a própria comida. Eram frango, carneiro, arroz carreteiro, claro, e até maçã de sobremesa. De quebra, passávamos as tardes ouvindo as histórias deles ou jogando baralho.

A verdade é que estávamos exaustos, Manaus não chegava nunca. Exatamente no dia da eleição para governador, o nosso capitão decidiu parar o barco próximo à margem na região de Itacoatiara. Nessa região, o Amazonas tem mais de 25 quilômetros de uma margem à outra, o verdadeiro “rio-mar”. A cidadezinha fora transferida para um ponto mais distante, por conta das enchentes, mas ainda sobrou uma ou outra casa, inclusive, uma espécie de empório.

Como a água da embarcação, mesmo gelada, não fosse muito confiável, entramos no estabelecimento, secos por uma cerveja gelada, um guaraná que fosse: “Tem alguma coisa em lata?” “Só óleo”, respondeu o proprietário, para nossa frustração. O jeito foi voltar para a embarcação e aguardar o final da viagem.

Como disse acima, a Zona Franca era um reboliço só, ditava o ritmo de Manaus naquela época. Permanecemos uns três dias na cidade e voltamos de avião. O voo do Boeing da Varig transcorreu sem sobressaltos até São Paulo, exceto por uma forte turbulência, enquanto sobrevoamos Brasília. Mas a isso já estávamos acostumados…


Manoel Dorneles

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