O fotógrafo abre-alas

Tínhamos na redação da revista Agora! (Editora Três, 1984-1985) um fotógrafo (cujo nome não vou citar) que usava uma artimanha, uma espécie de jogo de palavras, para franquear nossa entrada em locais onde normalmente a imprensa não era bem-vinda, especialmente em prontos-socorros e hospitais: ele dizia ao desavisado recepcionista que tínhamos passado por determinado órgão policial e, aparentemente, teríamos nossa entrada liberada pela autoridade.

“Nós viemos do Deic”, por exemplo, “e queríamos conversar com o rapaz baleado”, era a senha para facilitar nosso acesso. Ele não dizia “nós somos”, mas “nós viemos”, o que para um funcionário com pouco estudo poderia não ter diferença alguma. Ao dizer que nós ‘viemos’, ele poderia alegar, caso fosse desmascarado, que não mentira, porque em momento algum dissera ‘ser’ policial. Nós não tínhamos exatamente passado pelo Deic, mas essa era uma inverdade menor e menos passível de castigo.

A realidade é que isso funcionava. O atendente provavelmente achava que éramos policiais, não pedia identificação e liberava nossa entrada para conversar com o rapaz baleado ou outro desgraçado qualquer que estivesse por ali sucumbindo às sequelas da vida torta. Não me lembro de ter encontrado obstáculos para entrar onde quer que quiséssemos entrar.

Mas uma vez a história não rolou exatamente como queríamos que rolasse…

Foi em Mauá, região do ABC paulista. Um pequeno sorveteiro de nove anos havia sido vítima de tentativa de castração e estava internado no hospital local. Os bandidos o confundiram com outro garoto e tentaram retirar-lhe os bagos sem anestesia ou procedimentos cirúrgicos adequados. Nossa missão, para a revista, era fotografar e conversar com o menino.

Passamos pela delegacia, pegamos algumas informações e partimos para o, como se dizia antigamente, nosocômio. O fotógrafo escondeu a câmera às costas, prendendo-a com a alça de ombro a ombro e vestindo sua jaqueta por cima. No elevador, ficamos sabendo por uma faxineira que a ala pediátrica era no terceiro andar. Na saída do elevador, no terceiro andar, fomos abordados por uma enfermeira.

“Nós viemos da delegacia, estivemos com o doutor… (não me lembro do nome do delegado da ocasião), e queremos ver o garoto que foi castrado”, adiantou-se meu parceiro.

Uma coincidência nos ajudou nesse caso: havia um médico no hospital com o mesmo nome do delegado, e a enfermeira entendeu que tínhamos falado com ele, o médico. Por isso, não opôs resistência a nossa entrada na enfermaria. Abriu a porta, mostrou o garoto – que estava deitado logo na primeira cama, junto à porta – eu perguntei-lhe o que lhe fizeram, o pequeno sorveteiro saltou do colchão e baixou o pijama para mostrar o porta-culhões avariado. Nesse momento, o fotógrafo tirou a jaqueta, sacou a câmera das costas e bateu uma chapa (ainda não havia fotografia digital). Quase imediatamente, caiu a ficha e a enfermeira entendeu o moral da história…

Poderia parar tudo por aí, sermos expulsos do hospital e termos umas lembranças divertidas a contar aos nossos netos… Mas a enfermeira chamou o diretor do hospital, e antes que tentássemos justificar as ousadias que pareciam acompanhar cada repórter policial, estávamos diante de um oriental baixinho, de caneta em riste, que anotou os dados do fotógrafo enquanto determinava que a polícia fosse chamada. A essa altura, o filme já havia sido retirado da câmera e eu já o havia levado para o carro. Quando estávamos deixando o estacionamento, uma viatura da PM estava entrando.

Resumindo: depois de ouvirmos muito “isso não vai dar em nada”, “hospital não é domicílio” e “eles vão acabar deixando pra lá”, fomos processados e condenados por invasão de domicílio, com pena confirmada em segunda instância. Nossa sorte foi a primariedade, que nos garantiu sursis, porque, embora abrisse algumas portas, a artimanha do fotógrafo não nos tornava inimputáveis!    

Marco Antonio Zanfra

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