No tempo em que os bichos falavam

Sabem aquela cena clássica da patroa passando o dedo sobre o móvel e olhando para ver se a empregada tirou o pó direitinho? É mais ou menos o que sinto quando tenho uma de minhas interações com Deck, o gato. Ele olha para mim como a patroa insatisfeita com a limpeza do móvel, com ar de reprovação, exigindo providências. Só que não é um móvel e não é poeira no dedo: é uma tigela com água.
 
Acontece quando ele quer beber da tigela, que oficialmente pertence ao cachorro Fred, e percebe que o dito cujo dono da tigela já meteu sua língua comprida ali dentro e, lógico, deixou resíduos. Ele se vira para mim com ar de patroa e ordena, com seu olhar mandão: ‘Tem baba. Troca.”
 
Eu, claro, substituo a água, e ele, sem dizer palavra, inicia seu sorver lento e quase silencioso.
 
Isso mostra que é uma incongruência afirmar que os animais não falam. Eles só não verbalizam, mas falam, sim. Do jeito deles, mas falam. O gato precisou dizer alguma coisa, emitir algum som, alinhar sujeitos e predicados para que eu trocasse a água conspurcada pela baba do cão? Não! E eu, como bom ouvinte, entendi tudo direitinho!
 
Com minha mulher, ele usa uma linguagem mais, digamos, lúdica: imprime nela suas pequenas e afiadas garras ou morde-lhe o dedão do pé. Ainda não apanhou por isso, porque a mulher é muito paciente. Mas comigo, ele não se arrisca: só se comunica olhando com seu olhar mandão, ou soltando uns miadinhos irritantes. Se tentar usar o contato físico, sabe muito bem que seu pescocinho é frágil e que seria muito fácil para mim torcê-lo!
 
Já escrevi aqui que pesquisadores chineses descobriram que diferentes espécies podem ter um chamado ‘acoplamento neural’, que é quando a atividade cerebral de dois ou mais indivíduos se alinha durante uma interação. Isso acontece durante a troca de olhares, ou quando o cachorro ou o gato fica te encarando insistentemente. Nessa hora, é bem possível que os respectivos sinais cerebrais, os dos bichos e os seus, sincronizem-se e aumentem a conexão entre vocês. Quanto mais familiarizados vocês estiverem um com o outro, mais forte ela se torna.
 
Quando não tem minha mulher ao alcance de suas garras, o gato costuma ficar sentado um largo tempo olhando para mim, quando quer comida. Eu demoro a dar, só de birra. O cachorro também usa a linguagem do olhar insistente quando quer sair para o quintal, e se eu não dou bola ele avança dentro de meu espaço e fica me cutucando com seu focinho gelado, tipo aqueles chatos que costumam tocar no seu braço enquanto falam.
 
Mas a gente acaba sempre se entendendo. Ou melhor, eu acabo entendendo o que eles querem. Não sei se a recíproca é verdadeira, porém.

Marco Antonio Zanfra

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