Manchas de Cândida

O que mais irritava no Ribeiro é que a Selminha não se irritava nunca!
Exageradamente ordeira, extremamente compreensiva e completamente apaixonada por ele.
Seu closet era uma mistura de irritação e primor! Uma camisa em cada cabide por ordem de cores, as mais escuras na frente e, dentro de cada uma, a gravata com a cor correspondente. Ternos, paletós esportes, blazers, calças… sociais de um lado, esportes de outro. Tudo combinando de maneira perfeita e irritante e o que é pior: sentia-se impotente para não concordar com aquele arranjo. Era irrepreensível! Fora aquele aborrecido aroma de alfazema e benjoim!
A sapateira era uma constante ameaça à sua paciência! Primeiro estavam os sapatos… engraxados e brilhando! Uma vez espremeu um cravo usando aquele de cromo alemão como espelho! Depois vinham os tênis e, finalmente, os chinelos. Todos os calçados com o cadarço ajeitados caprichosamente dentro de cada um!
A gavetinha onde ela guardava as meias parecia uma caixa da Ferrero Rocher… e ele olhava aquelas bolotas bem-feitinhas de bombons-meias com ódio mortal.
Sempre à hora da janta era um Deus nos acuda! O prato de porcelana, o guardanapo de linho branco rigorosamente dobrado ao lado. Deve ter usado um esquadro, a desgraçada! Os talheres em perfeito 90 graus com a mesa, a taça para o vinho, outra para água… e para irritar mais ainda a Selminha sempre fazia as comidas que ele mais gostava. Outro dia teve ganas de afogá-la no maravilhoso bobó de camarão na moranga que ela fizera. Só não foi às vias de fato porque estava delicioso! Desgraçadamente gostoso!
Nem a procurava mais para o sexo. Não conseguia sentir tesão vivendo daquele jeito! Mas a Selminha nunca reclamava. Resignada, nunca exigia a menor atenção sexual! Ribeiro andava pelo próprio apartamento como quem estava andando sobre papel de seda. Sempre tinha a sensação de estar dentro de uma matéria da revista Casa Cláudia.
E o banheiro então… e o banheiro!!! Meu Deus… nunca tinha coragem de macular aquele antro de assepsia… mesmo nas necessidades mais prementes.
Que inveja que tinha do Brandão, casado com a Denise. A Denise sim é que era mulher… que só lavava a louça quando a última xícara tinha acabado de ser usada! O Pestana também… casado com a Janete! O Pestana dizia que o prato de maior sucesso da Janete era o seu famoso rim achocolatado com creme de banana… uma simples menção e o Pestana já ligava pro restaurante chinês. Vida boa a deles, viu… isso sem falar que tanto o Pestana quanto o Brandão fumavam dentro de casa batendo cinza no carpete e o scambau!
Uma vez decidiu jogar duro com a Selminha. Foi para a sala com uma torrada carregada de geleia de morango e, de propósito, melecou as mãos. Esperou um momento em que a Selminha estivesse olhando e zás! Limpou as mãos na cortina! Quando olhou pra ver a reação da mulher, ela tinha se materializado atrás dele! Estava com um pedaço de papel toalha e um sorriso nos lábios:
 — Que bom, meu amor… eu estava mesmo pensando em mandar essa cortina pra lavanderia. Tome, meu querido… use esse papel toalha… essa cortina está muito suja!
 Aquilo foi demais!
 Mas um belo dia… e sempre há um belo dia… Selminha, logo de manhã, ao colocar sucrilhos pra ele na tigelinha de porcelana, derramou uma lágrima sentida. Ele, claro, ficou preocupado:
 — Que foi, meu bem? Aconteceu alguma coisa?
— Sim! Terrível…
— Conta pra mim, conta… — estava paciente aquela manhã.
— Aquela sua camisa branca que você comprou em Paris…
— O que tem ela?
— Eu… eu… 
— Fala meu bem…
— Eu… oh! Meu Deus… que desgraça! — lágrimas escorriam.
— Meu bem, se você não me disser…
— Eu… eu… manchei a sua camisa com três gotas de cândida…
— O quê???? Você manchou aquela minha camisa???
 Ela desabou num choro compulsivo e desesperador:    
 — Sim! Sim! Sim! Eu manchei sua camisa… — caiu de joelhos e abraçou as pernas dele — … me perdoa, meu amor, me perdoa…
Ele ajudou-a a se levantar e cravou nela o olhar mais terno que ele conseguiu arrumar naquele instante…
— Meu amor… — disse ele —… isso é maravilhoso! Maravilhoso!
— Marav…?
Não deu tempo de ela falar alguma coisa… ele, num abraço envolvente, beijou-a na boca como nunca havia beijado antes. Deitou-a na mesa, em cima de sucrilhos, queijo, manteiga, frutas… rasgou-lhe a roupa e amou-a ali mesmo como nunca a havia amado antes. Fechou o zíper, ajeitou a gravata, deu um beijo na mulher e saiu assobiando!
 Selminha, ainda deitada na mesa, estava com um estranho sorriso nos lábios. Caramba… ele nunca fizera isso com ela! Olhou o moletom rasgado, tirou os sucrilhos grudado nas costas e sorriu novamente! Respirou fundo… uau! A melhor trepada que já dera e, veja só, por causa de uma mancha de cândida!
A partir daquele momento mágico, revelador… as coisas mudariam naquela casa! Os dias foram passando e a pia da cozinha cada vez mais cheia de louça suja… e tome sexo! Seu closet agora era uma zona total, um festival de camisas, camisetas e cuecas socadas de qualquer jeito. Tome sexo! A gavetinha de meias, agora, não tinha apenas meias… tinha chave de fenda, pacotinhos de OB, frascos de remédios, abridor de latas, uma caixinha de Knorr… e tome sexo! A casa recendia a cigarro e bebida… e tome sexo!
O Brandão e o Pestana, dizem, quase morreram de inveja…
Aurélio de Oliveira

Um comentário

  1. Texto divertido, mas acho que um pouco ‘regionalizado’: creio que só os paulistanos/paulistas conhecem a água sanitária como ‘cândida’ (nome comercial); aqui em Santa Catarina, é chamada de ‘Qboa’ (também nome comercial).

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