Ele não frequentava redes sociais. Porém, depois de muita insistência dos filhos, acabou
cedendo. E em apenas duas semanas encontrou um mundo de gente que nem sabia mais
que existia. Colegas de escola de quem não recordava o nome, funcionários de empresas
onde trabalhou e vizinhos de ruas em que morou. Ele passava por isso tudo sem grande
interesse até que acabou parando no grupo Fazenda Velha, criado pelo amigo de um
primo com histórias ligadas às terras da família no interior paulista. Navega daqui,
xereta dali; crônicas, poesias e, quando estava prestes a sair, dá de cara com a fotografia.
Lá está ele, aos dezesseis anos de idade, espinha, barba nascendo, magro, magro! E lá
está ela, cabelo escuro solto nos ombros, catorze anos apenas, já com as curvas de uma
mulher. Eles estão na pracinha da cidade. Quatro meninas espremidas num banco, dois
garotos em pé atrás e um na frente, sentado no chão. Adolescentes que tomam sorvete
brincando com a câmera. Aline, seu primeiro amor, ergue embevecida a casquinha para
o céu.
Roberto fica olhando sem pressa, aumenta o tamanho da imagem; a felicidade numa
noite quente e estrelada surge nítida, quase palpável. O grupo é iluminado por um poste
no estilo antigo que espalha luz amarela sobre a praça vazia. A irmã de uma das garotas
veio buscá-la e tirou a foto, ele se lembra.
Lembra também do garoto apaixonado que acompanhou a amada até em casa, juntando
forças para perguntar a coisa mais importante do mundo.
— Você quer ficar comigo?
— Namorada?
— Namorada, minha namorada — confirma o menino, abraçando a cintura dela.
O casal está prestes a completar a cena quando o pai dela aparece na porta:
— Aline, está na hora de entrar, está tarde, boa noite, mocinho.
A garota fecha o portão com a promessa de namoro nos olhos. Quarenta anos depois,
Roberto se enche de ternura. O romance mal resolvido é de uma ingenuidade
comovente. O beijo não dado, uma decepção sem tamanho. — Muito bonito, seu Roberto, em vez de dormir fica aí na rede social — diz Alex,
tirando uma com a cara do pai. — Quase meia-noite, quem diria, hein?
O rapaz acaba de chegar da faculdade depois de um dia de trabalho. — Vem aqui, filho, olha esta foto.
Alex pega um suco na geladeira e se acomoda em frente ao computador. Roberto conta
sobre o verão de 1982, o ano em que passou as férias com o primo na fazenda do avô;
viraram o centro das atrações das meninas, todas a fim deles. Menos Aline, por quem
todos se encantavam, inclusive os rapazes mais velhos. — Ela adorava ler, levava livro para todo lugar. Eu lia porque minha escola tinha um
círculo de leitura obrigatório e aí O Quinze, da Rachel de Queiroz, nos aproximou.
Ficamos amigos, a paquera rolou, só que não teve beijo — conta Roberto. — Quando ia
começar o namoro, meu avô teve um AVC, viemos correndo para São Paulo e eu nunca
mais a vi. — Não seja por isso, vamos descobrir agora onde ela anda. Qual o sobrenome dessa sua
quase-ex? — pergunta Alex, empurrando o pai para assumir o teclado do desktop.
Manzi? Manzini? Após a separação, eles trocaram umas poucas cartas, logo ela mudou
de cidade. O pai, agrônomo, foi trabalhar com os cafezais de Minas, perderam contato.
— Não lembro, deixa, amanhã eu vejo. Você tem razão, filho, está na hora de dormir. E cadê que o sono vem? Roberto remói a nostalgia na cama, saudade boa resgatada na
memória. Ao acordar, manda mensagem para o primo, ele sabe o nome completo da
musa daquele verão? Ou consegue a informação com o amigo que postou a fotografia?
A resposta chega à noite, quando volta do trabalho. Ele tecla e a mulher com os óculos
na mão surge na tela. Uma senhora elegante numa biblioteca, olhando para a câmera
com a vivacidade de tantos anos atrás. Navega por posts com a filha, neta, grupos de
amigos — nada de marido ou namorado. Alívio!
Roberto está sorrindo quando ouve o barulho da porta da sala. Havia esquecido que o
outro filho, o mais velho, vinha jantar. — Já sei de tudo, a ex-namorada, e essa é ela, não negue!
Fabrício fala alto e, como Alex, está em campanha para que o pai encontre alguém.
— Quase ex-namorada, quase, não teve nem beijo!
Os filhos sabem o quanto Roberto sofreu com a doença da mãe. E o quanto ele tentou
sair com outras mulheres depois que ela morreu. Nenhuma vingou. — Cara, essa senhora tem tudo a ver com você. Até essa foto no deserto de Atacama
parece no mesmo lugar da que você tirou!
Ele não tinha reparado nas fotos de férias. Fabrício, de posse do teclado, num minuto,
encontra tudo.
— Faz contato, pai, quem sabe? Não é legal viver sozinho.
— Eu não vivo sozinho, o seu irmão mora aqui, esqueceu?
— Dorme aqui, você quer dizer. E ele se muda no fim do ano, você sabe…
— Sei, sei. E sei também que estou morrendo de fome, vamos pedir a pizza.
Calabresa com cebola, cerveja, futebol. Assim que Fabrício vai embora, ele resolve
arriscar, escreve para ela. Em meia hora vem a resposta: Lógico que eu me lembro de
você, há quanto tempo!
A conversa é leve, divertida, no correio da rede social. Um mês de bate-papos, de likes
nos stories, comentários no feed. E os filhos insistindo para ele marcar um encontro.
Mas será que ele quer rever uma pessoa que mal conhece? OK, eles conversam online
como se fossem íntimos, em total sintonia… Será?
O sábado amanheceu chuvoso, não dá para jogar tênis, ele não precisa fazer
supermercado, passar na lavanderia, nada. Talvez vá ao cinema, visite a irmã, ou… — Bom dia, agenda lotada no final de semana? Tem espaço para encontrar um velho
amigo?
Foi assim, sem pensar muito, que Roberto fez o convite no aplicativo de mensagens.
Eles haviam trocado telefones, mas sem ligações ainda. Agora estava feito, não dava
para apagar, ia ficar chato. — Zero de programação (com dois emojis tristonhos) — responde Aline. — Que tal se
a gente almoçar numa cantina sem cantoria? — emenda, decidida como sempre.
Ele chega quinze minutos antes do horário combinado. Pede logo o couvert e uma
garrafa de vinho; gosta do ambiente e do que vem à mesa, mais um ponto para ela.
Quando pensa em encher o copo de novo, a antiga paixão para na entrada do
restaurante, vasculha o ambiente e sorri com a alma ao vê-lo sentado. O cabelo dela
agora é curto e avermelhado, as curvas se arredondaram, a pele clara ganhou rugas
suaves. A garota linda envelheceu de bem com a vida! — Que delícia te ver, Roberto! — cumprimenta Aline oferecendo o rosto para ser
beijada.
Ele agradece a Deus por ter feito o convite. Serve o vinho, brindam e começam um
almoço sem pressa. Entrada, prato principal, sobremesa. Ela fala das aulas, dos alunos,
da universidade onde ensina literatura; ele diz que mata um leão por dia como todo
pequeno empresário no Brasil. Filhos, netos, família.
Mais uma garrafa de vinho, ele conta que ficou viúvo há cinco anos e ela que se separou
há dez. Café, licor, risadas. Filmes, passeios, viagens. Mais risadas e já são quatro da
tarde. A chuva lá fora aperta, o dia escurece e, por um momento, eles ficam em silêncio. — Você ainda lê os clássicos? — Não, professora, eu confesso! — ele espalma as mãos como um suspeito pego em
flagrante. — Foi só na escola, e serei eternamente grato à dona Rachel por ter me
aproximado da menina mais bonita da cidade! — Do primeiro amor ninguém esquece, né? –— diz Aline brincando. — Nem do
primeiro beijo frustrado! — É, não esquece porque doeu… Você sabe que nas minhas andanças pelo passado nos
últimos dias eu acabei trombando na internet com uns versos do poeta lá da região da
fazenda, um poema que fala do beijo que não houve… — “Só tu” — interrompe Aline. — O poema se chama “Só tu”, é do Paulo Setúbal. É
bem romântico.
A professora tecla rápido no celular e recita:
Tu que jamais me beijaste,
Tu que jamais abracei,
Só tu, nest’alma, ficaste
De todas as que amei.
Enquanto ela declama, ele sente o coração adolescente gritando no peito cinquentão. — Você quer pegar um cinema amanhã?
— Depende do filme — ela ri gostoso. — Se for de super-herói eu não quero não!
Roberto ri também e pede mais um licor. Ele não sabe no que vai dar essa história,
nunca dá para saber com antecedência. Mas, de uma coisa tem certeza: desta vez, não
haverá beijo perdido!