Acredito que boa parte dos jornalistas de minha geração participou da malfadada greve de 1979, que parou as redações de São Paulo, mas não impediu que os jornais continuassem circulando. Um movimento mais do que frustrante, mas que também serviu como um baita aprendizado para todos, inclusive aos patrões. Descobriram que era possível fazer jornal sem jornalista, este é o fato.

De verdade, a maioria de nós não passava de um bando de focas, enfurnados pelos ventos paredistas que ainda sopravam do ABC Paulista. Ao contrário dos metalúrgicos, era nítido que nossa categoria carecia de um norte, um consenso, talvez um apelo mais consistente. Paramos, simplesmente. Difícil apontar os responsáveis pelo nosso fiasco. Fácil falar de pelegos, fura-greves, traíras, claro que os tínhamos aos montes entre nós (eles nunca acabam), mas não foram eles os únicos culpados.

À época, eu trabalhava nos Diários Associados pela manhã e, à tarde, na Agência Folhas. Fazer greve nos jornais do Chateaubriand era a maior moleza. A prática já era comum no financeiro deles, notadamente no dia 10.  Eles paralisavam suas atividades e nunca nos pagavam. Já no Grupo Folhas era mais complicado. O dinheiro, por pouco que fosse, chegava sempre em dia. Por conta da dupla atividade, mais de uma vez, tive que socorrer meus amigos dos Diários em apuros financeiros.

A estratégia grevista exigia que os piquetes se dessem longe de nossos locais de trabalho. Por conta disso, estive uns dois dias no Estadão, mas uma noite resolvi ficar em frente do prédio da Folha mesmo. Pior viagem. Estou parado na calçada, quase em frente da porta principal do prédio, quando noto do outro lado da rua, alguns policiais enquadrando o Eduardo Suplicy e agredindo um outro rapaz. Mais tarde soube que era um repórter da Veja.

Enquanto xingava os agressores de tudo quanto era nome, aproximou-se sorrateiramente um PM (baixinho, lembro bem) e me deu um soco na cara. Só não revidei porque duas freiras (até acho que podiam ser da Família Cristã), seguraram o meu braço e fizeram o trabalho do “deixa disso”. Elas e um oficial da PM que, educadamente, na medida do possível para a ocasião, pediu para eu sair dali.  

Engraçado que essa não foi minha primeira greve e nem a primeira vez que apanhei por causa de minha, digamos, rebeldia contra o status quo. Tinha lá meus 11 anos e estudava no seminário dos padres Paulinos, no Km 18 da Raposo Tavares, então a principal rodovia para o sudoeste paulista. Bom que se diga que minha mãe me colocou lá porque sonhava em ter um filho sacerdote, e também para me afastar da malandragem das ruas paulistanas.

Éramos um grupo de uns 60 meninos da admissão, obrigatória na época, para o acesso ao ginásio. Tínhamos um padre responsável pela turma e um noviço, já de batina, que nos acompanhava em tempo integral. Era uma espécie de cão de guarda a nos vigiar 24 horas no recreio, refeitório, dormitório, capela e até na gráfica, onde “trabalhávamos” umas quatro horas por dia.

A questão hormonal parecia mexer muito com o humor do paranaense Agostinho Volpato (este o nome do nosso vigia), então na flor dos seus 20 anos. Ele não fazia a mínima questão de ser simpático ou amigável com a garotada, tratava todo mundo da mesma maneira, aos gritos, trancos e solavancos.

Certo dia, após o almoço, eu e mais meia dúzia de meninos nos reunimos no bosque vizinho para brincar, como sempre fazíamos, e discutir nossa situação no internato. Falávamos exatamente dos maus modos do Agostinho, quando, não me lembro exatamente se eu ou alguém do grupo, propôs uma greve. Quem sabe assim o padre responsável não colocava um outro assistente no lugar dele.

Claro que não ia ter greve coisa nenhuma (não sabíamos direito o que era e nem havia condições para tanto), mas naquele mesmo dia, tive uma ingrata surpresa. Durante as nossas duas horas de estudo, que antecediam o jantar, Agostinho me chamou lá frente da sala. Me colocou de joelhos de costas para meus colegas e, de repente, começou a me dar tapas na cabeça, aos gritos de “faz greve, faz”, “faz greve, faz”.

Voltei para o meu lugar, chorando, claro. Nunca descobri quem fora o nosso Joaquim Silvério dos Reis, o dedo-duro. Não procurei o padre e nem comentei o fato com minha mãe. Do jeito que ela era, talvez eu até apanhasse de novo. Há situações que deixam feridas profundas na alma. Decorridos quase 60 anos, nunca vou esquecer esse episódio. Concluo que perto dele, o soco do PM, em frente da Folha, foi quase um afago…

Manoel Dorneles

6 comentários

    • Mas o que me marcou mesmo foram os tapas na cabeça dados pelo Agostinho. Naquele tempo, a gente apanhava e ficava por isso mesmo. Hoje, ele estaria ferrado

  1. Bom texto, Dorneles! Eu estava nessa greve. Trabalhava na Folha e no Estadão. Fiz piquete nos dois e, durante duas noites, dormi no sindicato. Nessa noite, na porta da Folha, tomei uma cacetada no ombro de um PM… cacetete de borracha, daqueles de “apagar”ideologias. Mas você tem razão: foi uma greve insana e impulsiva, sem o menor planejamento. Uma boa lembrança é que, numa dessas noites no sindicato, trabalhei ao lado do Henfil, que desenhava seus personagens e eu fazia um balãozinho com a frase: “Apoie a greve dos jornalistas!”. Fim da greve, voltamos ao trabalho. No Estadão, nem deixaram a gente entrar no prédio. Demitidos sumariamente! Na Folha, o Carlinhos, chefe da Revisão, aceitou-nos de volta sem problemas. Grande figura era ele!

    • Também trabalhei na revisão com o Carlinhos. Só sai porque recebi um convite para ir trabalhar na reportagem da Folha Metrpolitana, em Guarulhos. De lá, voltei pra Agência

  2. Eu me lembro que a Folha passou a ser editada no Hotel Jandaia e que nosso contracheque saiu direitinho, entregue no 458 da Barão de Limeira. Enquanto esperávamos na fila para receber, Bóris Casoy fazia tchauzinho pra gente da sacada do quarto andar do 425.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *