Esquema ninja

Trabalhei durante seis meses, pouco antes de voltar do Japão, num bentô-iá na cidade de Matsumoto, província de Nagano. Bentô-iá é a empresa que fabrica os bentôs, pratos prontos vendidos em lojas de conveniência e aptos para consumo depois de uma rápida visita ao micro-ondas. Uma marmita, para ser mais simples e exato.

Trabalhávamos da meia-noite às oito da manhã – depois de passar por um minucioso processo de auto-higienização – numa verdadeira linha de montagem: dezenas de funcionários, à margem de esteiras rolantes, iam colocando gradativamente as guarnições em cada prato. Nesse processo teoricamente ininterrupto, não me lembro de quantas vezes, graças à minha proverbial destreza manual e aos molhos muitas vezes melequentos, a esteira teve de ser parada até que eu colocasse os devidos ingredientes em seus devidos lugares.

Quando terminava a montagem dos pratos, os alimentos que sobravam tinham um destino obrigatório: o lixo. Para evitar possíveis contaminações e eventuais processos judiciais, nada era reaproveitado, e a empresa incinerava as sobras diariamente. Não importava o que fosse: tempura de camarão, snacks de frango e outras frituras menos nobres, além de diferentes empanados. Dava dó ver aquilo tudo ser inutilizado.

E fome, claro! Experimente ser do dia e passar a trabalhar a noite inteira – o que, logo de cara, desestabiliza seu relógio biológico – sem sentir fome. Com o agravante de trabalhar numa empresa de alimentação…

Pois bem. Um colega nosso, seu João, nissei de Belém do Pará, criou o que ele mesmo batizou como ‘esquema ninja’: enquanto empurrávamos as caixas plásticas contendo os restos de comida para onde era depositado o lixo, que ficava num local distante das esteiras de linha, enfiávamos as mãos, protegidas com luvas plásticas, nos recipientes e, com agilidade, colocávamos um ou mais petiscos boca adentro. Também era possível empalmar a comida e guardá-la dentro da luva, para comer no intervalo de vinte minutos que tínhamos no meio da madrugada.

O esquema ninja previa que quem fosse organizar as caixas para o transporte colocaria os melhores produtos nos recipientes mais altos, reservando o primeiro deles com o material menos atraente, para servir de porta falsa. De dez a quinze trabalhadores faziam parte do esquema, que, pelo menos no período em que trabalhei no bento-iá, não foi descoberto. Ou pelo menos não denunciado. E ninguém mais reclamou de fome.

Essa experiência aconteceu há 27 anos. Por que me lembrei disso agora? Porque na Espanha, recentemente, um funcionário do supermercado Mercadona comeu croquetes – que, como nos produtos do esquema ninja, estavam a caminho de ser descartados no lixo – foi descoberto e punido com demissão por justa causa, por ‘fraude, deslealdade ou abuso de confiança’, conforme alegou o RH. Os patrões disseram que ele estava comendo sem pagar algo que pertencia ao estabelecimento (cada um dos croquetes custava 4,20 euros). O fato de o produto estar a caminho do lixo era irrelevante para a administração do estabelecimento.

A Justiça espanhola decidiu de forma diferente, entretanto, e deu razão parcial ao trabalhador. Mesmo que não concordasse com a normalidade de comer um produto sem pagar, ainda que estivesse a caminho da incineração, considerou exagerada a demissão, e ofereceu ao Mercadona duas alternativas: ou reintegrava o funcionário, ou pagava a ele uma indenização de 40 mil euros, algo em torno de R$ 245 mil.

Pois o supermercado preferiu indenizá-lo a dar o braço a torcer.

Penso que se o funcionário tivesse bolado algo como nosso esquema ninja, e fizesse tudo menos às claras, como nós, certamente não teria perdido seu emprego.

Marco Antonio Zanfra

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