Era uma casa charmosa. Não exatamente bonita pelos padrões atuais de arquitetura, mas muito, muito charmosa. De rara elegância.
E era também muito orgulhosa. Sabia que era a mais bem tratada da rua dos Albericos (ninguém nunca soube o porquê do nome, nem conheceu ninguém com ele que lá tenha morado). Seus encanamentos eram de primeira, em cobre, assim como a parte elétrica. Tudo com manutenção preventiva. O telhado era um primor e abrigava um simpático sótão, usado como “atelier” de costura e também escritório. Pé direito com quase quatro metros de altura; quartos enormes, com armários embutidos, coisa rara para a época, encantavam a todos. Surpreendia a “largueza” da cozinha e da copa, com azulejos portugueses, armários e prateleiras feitas sob medida. Sem igual!
Pintura?
Todos os anos. Pena que ela não conseguia palpitar na cor. Bem que gostaria. Iria pedir aos Souza que usassem uma tal de marrom-toledo, pois, pelo som, ela lhe cairia muito bem.
Mas, naquele ano, o amarelo claro era a cor.
No jardim, “propriedade” da vó Eva, girassóis, camélias, rosas e margaridas encantavam os passantes. No quintal, a horta, também dela, abrigava pés de tudo. Tinha couve, alface, tomate, cebolinha, coentro, cheiro-verde, abobrinha, pimenta, e tudo o que se quisesse imaginar, até uma árvore com tomates, raros até hoje. Também os temperos não precisavam comprar, pois ali de tudo se encontrava.
Tinha também babosa, ótimo produto para manter fortes e bonitos os cabelos; comigo-ninguém-pode e espada-de-São Jorge para “proteção” da família. Algumas bananeiras, dois pés de “mixirica”, outro de carambola, que hoje chamam de estrela e vai até em salada, e um de jabuticaba. Uma delícia de quintal! Ah, tinha também alguns patas e galinhas, que botavam ótimos ovos. Tudo muito bem cuidado pela vó Eva, que também respondia pela cozinha, com a ajuda da Luzia, sua simpática colaboradora há mais de 20 anos. Juntas, elas faziam coisas que até os deuses chegavam para o almoço/jantar.
Simplicidade
Por dentro, uma decoração simples e aconchegante. Seus donos eram “do bem”. Gente boa mesmo. Nos quartos das crianças, a decoração, se é que se pode chamar assim, era resultado da idade de cada um: a menina, com 11 e o garoto, com 14. No do Sérgio, hoje quase avô, fotos do Pelé, Garrincha e Cláudia Cardinale nas paredes, e uma bagunça em volta da escrivaninha, as meias, tênis, shorts e camisetas, sempre fora do lugar, mas nunca no chão. Na época ainda não existia nem o Nintendo, muito menos computadores.
No da Flávia, que hoje viaja pelo mundo fazendo palestras sobre o meio ambiente, tudo arrumadinho. A escrivaninha sempre correta e fechada após o uso. Cada coisa no seu lugar, inclusive suas bonecas, sempre penteadas e usando roupinhas limpas. Uma doçura!
Cada um era dono do seu nariz e, neste aspecto, ninguém se intrometia no quarto alheio.
Na suíte dos pais, Carlos e Maria Ignês, um quarto com cara de pais. Nada mais, nada menos. Uma vitrola para tocar os LPs românticos nos momentos íntimos do casal, uma bela e antiga penteadeira, armários embutidos combinando. Tudo muito bem cuidado, se bem que, vez por outra, sobrava um par de meias masculinas (sempre elas) ao lado da cama.
A casa não poderia estar mais bem localizada. Ficava numa rua larga, tranqüila naquela época usava-se o trema), muitas árvores, pavimento ainda em bom paralelepípedo e apenas trânsito local. As casas vizinhas tinham características muito semelhantes, mas não eram como ela. Eram todas muito bem cuidadas, com suas calçadas sempre limpas e muros baixos que deixavam ver seus jardins, mas não tão bonitos como o da 148, onde moravam os Souza.
Quem morava na rua?
Pessoas tão boas quanto os da casa 148. Tinha comerciante. Tinha bancário, do Banco do Brasil, claro! Dois médicos, um doutor engenheiro da Light. Aposentados que moravam com seus filhos, como a dona Eva, mãe do Carlos, que era a dona da casa. Tudo gente boa, que se conheciam desde há muito tempo. Gente que se dava bem. Tão bem que gerou alguns casamentos ali na rua mesmo. Por exemplo, a Cidinha, do 35, casou-se com o Jorge, do 38. Passaram muito tempo se olhando das respectivas janelas. Depois, tinham uma janela, só para os dois e os filhos ganharam também suas janelas. Moravam com o pai dela, aposentado.
De vez em quando surgia uma briga de moleques. Mas era tudo resolvido na paz, com um ou outro puxão de orelhas. E a vida na rua voltava ao normal.
Os cães andavam por lá, meio que soltos. Os gatos também. Mas não havia chance de brigas. Não que a harmonia da rua influenciasse caninos e felinos, fazendo-os amigos. É que, por uma razão de segurança, os gatos andavam sempre sobre os muros, só correndo riscos quando atravessavam de um lado para o outro.
E não pensem que aquela era uma rua longe da capital. Era ali mesmo, na grande cidade, mas tinha a cara de viela de cidade do interior. E das pequenas.
A casa se sentia muito feliz ali.
Pela manhã, o movimento das crianças que saiam de casa, mochila nas costas, chutando pedras, chamando os amigos atrasados, fazendo confusão com os cachorros, espantando os gatos. Quando a molecada ia pra escola, o sossego da rua acabava e ninguém mais dormia naquela rua. Mas era coisa de 10 15 minutos e a paz voltava.
A vida era harmoniosa na rua daquela casa.
Mas, um dia, a rua dos Albericos acordou mais cedo, com um bando pessoas estranhas andando de lá pra cá, de cá pra lá. Carregavam nas mãos uma coisa que mais parecia um binóculo. – o que estariam fazendo ali? – pensou a casa dos Souza.
– Que povo é este tirando a tranqüilidade da nossa rua?- indagou a si própria, sem resposta.
– Que tanto eles olham com aqueles binóculos? Estão me vigiando. Tenho certeza disso. Por quê? Será que estão me medindo para aumentar o IPTU? Coitado do meu dono, já gasta tanto dinheiro com imposto e não recebe nada em troca. Paga IR, INPS, “I” isso, “I” aquilo e nenhum retorno. Ele também paga a Guarda-Noturna, a escola das crianças e faz poupança para ter uma aposentadoria decente, porque, se for depender do governo, vai morrer de fome quando parar. É só imposto, imposto, imposto. E muita promessa, sem que nenhuma seja cumprida. Como é até hoje.
Os homens dos “binóculos” ficaram por ali de um lado pro outro, anotando, anotando a manhã inteira. E se foram sem que ninguém conseguisse descobrir do que se tratava. E as vidas da Albericos e da casa 148 voltaram ao normal.
É preciso abrir um parêntese para contar por qual motivo ninguém soube do que se tratava. É que, justo naquela manhã a dona Pura – isso, a fofoqueira da rua, tinha ido ao Centro, para compras, e só voltou à tarde.
Tempos depois, antes que ela conseguisse saber o que acontecera, os moradores da rua receberam um questionário da prefeitura perguntando sobre seus destinos: dali iam pra onde? Centro, outro bairro, fora da cidade? Não havia explicações para as perguntas. As pessoas estavam satisfeitas com suas vidas?
Gentis que eram, responderam sem dar muita atenção à pesquisa. Todos é modo de dizer, porque dona Terezinha, da casa 53, não respondeu. Era gente boa, mas muito rabugenta e avessa a que alguém se metesse na sua vida.
– Pra que querem saber da minha vida? Eu vou pra onde quero – esbravejou!
Mas, num outro dia, ensolarado, em que cães e gatos seguiam cada qual pelo seu caminho, apareceu uma perua com alto falante – exatamente como aquelas que vendem… “pamonhas, pamonhas fresquinhas de Piracicaba” – anunciando “uma nova vida no bairro”. O locutor falava de transporte público, linhas de ônibus, melhor acesso ao centro.
Faixas foram colocadas anunciando a criação de linhas de ônibus para “facilitar” a vida de todos.
E, o pior, a prefeitura iria asfaltar a rua dos Souza, até então de bem cuidados paralelepípedos.
A casa não entendia nada. Nunca soubera que alguém na rua reclamara da falta de nada. Ela, nas conversas com as outras casas, só ouvia elogios para o sossego do lugar.
E, se a casa não entendia, os moradores muito menos. Afinal, a escola era perto e a molecada ia e voltava a pé. Para ir ao centro, quem não tinha carro não se importava de andar três quarteirões para pegar o ônibus da avenida. O paralelepípedo, bem assentado, não causava problemas, a não ser quando o “boyzinho” da 147 acelerava demais o Opalão do pai em dia de chuva. Era o maior auê e uma enxurrada de reclamações da rua inteira.
– Devem ser estas coisas de político que inventa pra atormentar a vida das pessoas. Onde já se viu – esbravejava dona Terezinha – ônibus na nossa rua! Isto vai virar um inferno, ainda bem que o falecido não viu isto, porque ele ia morrer de tristeza.
Aquilo uniu ainda mais os vizinhos dos Souza. Fizeram inúmeras reuniões, prazerosamente fornidas de bolinhos de chuva que a dona Eva preparava com esmero e carinho. Foram falar com o vereador do bairro que, claro, lamentou-se, esquivou-se e nada resolveu, como sempre fizeram e fazem até hoje todos os políticos desta terra descoberta por Cabral.
Correram à prefeitura e lá o alcaide também tirou o corpo fora dizendo que não podia impedir o progresso”.
E ele chegou com o asfalto, linhas de ônibus, um roubo aqui, outro ali. E com a maior das tristezas. Dona Terezinha ficou doente, os filhos venderam a casa e foram embora. O vizinho dela também desistiu de enfrentar aquela bagunça e foi-se. No lugar das duas casas surgiu o magnífico “Chateaux La Plage”, que tinha apartamentos com cinco suítes, 18 vagas na garagem, segurança máxima, piscina, quadra de tênis, de bocha, academia de ginástica. Um primor de lançamento. Mas, mesmo com a enorme garagem, sempre tinha muito carro sobrando e já não havia como parar carros dos visitantes na rua dos Souza.
Mais gente se mudou deixando terrenos para novos e modernos empreendimentos imobiliários. Cada vez mais sofisticados. Cada vez maiores.
E a casa foi ficando preocupada com aquilo. O próximo prédio tomou-lhe o sol. Era o fim do jardim da dona Eva. E, junto com ele, foi boa parte do pomar e toda a horta. Sobrando mesmo só as bananeiras, a “comigo-ninguém-pode” (e não pode mesmo) e um pálido pé de “mixirica”.
Naquele ano, a pintura não foi programada. Nem executada. Um problema no chuveiro das crianças não foi reparado em definitivo, apenas um consertozinho. Algo havia de errado na casa dos Souza e ela começou a ficar preocupada. Mais ainda quando foi programada uma viagem de férias de todos. Antes de viajarem, os Souza conversaram sobre os problemas da rua, da dificuldade em viverem sem o sol, sem os amigos que os haviam deixado, praticamente sós nas ruas, sem molecada indo pra escola nem gatos fugindo dos cachorros. E saíram em férias.
E lá deixaram a casa, fechada, às escuras, sem sol e sem o canto dos pássaros que há muito deixaram de “freqüentar” aquela outrora pacata e atraente rua para os bichos de penas.
Foi duro para ela. Estava desesperada diante do abandono. E começou a usar todos os meios para comunicar-se com outras casas. Mandava mensagens pelas antenas da TV, pelo fio do telefone, pelo fio da luz, canos de água.
Pedia socorro.
Sabia que estava prestes a desaparecer e ter suas portas e janelas em pinho de riga serem disputadas por um alto dirigente da indústria automobilística, que era louco por elas.
Mas ela não ia entregar os pontos assim, sem lutar. E continuou pedindo socorro a outras casas.
Quase um mês depois, a família voltou, sem muito entusiasmo, para a rua dos Albericos. Para a casa 148.
Ao pararem no portão, encontraram um terreno vazio.
Se assustaram. A vó Eva não acreditava no que via e pensava se as imobiliárias teriam tido a ousadia de demolir a casa na marra – afinal, neste País, tudo é possível mesmo, não é?
Todos desceram do carro, abriram o portão e viram aquela placa, bem no centro do terreno:
MUDEI PARA A
RUA DA ALEGRIA, 77.
ONDE VOCÊS SERÃO
BEM-VINDOS.
Obs: a Rua da Alegria só tinha casas e a dos Souza estava pintada de marrom-toledo.
Chico Lelis