O drama das oito crianças paquistanesas presas em um teleférico, a 275 metros de altura, me fez relembrar de uma situação vivida há 23 anos na Grande Muralha da China. O cabo do nosso teleférico não chegou a arrebentar, mas ficamos pendurados por uns 40 minutos sobre um abismo, a uns 500 metros do chão. Ressalte-se que estivemos lá em 2000, quando a China ainda não era essa potência tecnológica dos dias de hoje.
Era um país que produzia muito, tratava seus cidadãos quase como escravos e procurava varrer suas mazelas para debaixo do tapete, tapete não, tapumes. Da mesma forma que nas Olimpíadas de 2008, em Beijing, as estruturas de papelão e madeira já eram usadas para ocultar os barracos e casebres miseráveis. Era um contraste violento com os modernos prédios que começavam a ser construídos.
Depois de visitar a Praça da Paz Celestial, a Ópera de Pequim, a Cidade Proibida e degustar o celebrado pato laqueado, é hora de conhecer a Grande Muralha. Uns 100 quilômetros ao norte de Beijing, o ônibus nos deixa aos pés do monumento. O movimento de turistas de todas as partes do mundo, vendedores ambulantes e guias é intenso.
A maior parte dos guias é de mongóis, habitantes dessa província chinesa, conhecida como Mongólia Interior. Eles são aparentados com os mongóis da Mongólia, o país, localizado mais ao norte. Simpáticos e prestativos, se deixam fotografar com os turistas, e oferecem não só roteiros, como também camelos e cavalos a quem estiver com preguiça de subir a pé o morro, por onde passa a muralha, cerca de 200 a 300 metros acima.
Alguns do meu grupo optam pelos cavalos, outros decidem encarar a subida. Eu e o Cássio, então executivo da Acer, nosso anfitrião nessa viagem, somos do grupo da caminhada, do trekking, melhor dizendo. Dispensamos o guia e atingimos sem problemas a muralha, bem preservada em alguns trechos e reduzida a uma simples trilha em outros. Fizemos mais de quatro quilômetros, entre subidas e descidas.
Confesso que nesse trajeto rompi com um dos meus princípios de jamais deixar minha assinatura em lugares públicos. Até então, me vinha à mente as palavras do padre Virgílio, meu professor de latim no seminário “Nomini stultorum in omnia locum est” (O nome dos estultos está em todo lugar). Numa das guaritas, entre um trecho e outro, peguei uma pedra e tasquei meu nome na parede. E ainda pedi que me fotografassem. O padre que me desculpasse, mas sabe-se lá quando (e se) eu voltaria àquele lugar de novo?
A Grande Muralha hoje em dia está preservada e aberta à visitação em alguns trechos e, em outros, está totalmente destruída. O nosso percurso, por exemplo, terminava num grande desfiladeiro, onde havia uma espécie de deck. De lá, a pessoa tem duas opções: percorre os quatro quilômetros de volta ou pega o teleférico, como fizemos.
Não sei como está o sistema atualmente, mas no ano 2000, o estado das máquinas e dos cabos assustava um pouco. Nem ousei perguntar se alguém ali já ouvira falar em manutenção. Antes do embarque, somos informados que o trajeto até o solo demora uns 40 minutos. Sentados nas “cadeirinhas”, dois a dois, lá vamos nós.
Uns dez minutos após a partida, justamente sobre a parte mais profunda do desfiladeiro, o sistema sofre uma pane. Talvez tenha sido uma queda de energia, mas àquela altura, não havia ninguém ali para nos confirmar isso. Tampouco ouvi alguma mensagem pelos alto falantes e, se tivesse ouvido, não entenderia nada, pois naquele tempo poucos falavam inglês na China.
Ficamos pendurados sobre o precipício por aproximadamente 40 minutos. E posso lhes garantir que nessas horas, não existe ninguém ateu. Mas, naquela ocasião, nem rezar conseguimos. A cabeça viaja. Você lembra, sobretudo, que está num país comunista, subdesenvolvido, onde tudo é mal gerido pelo estado, inclusive a manutenção daquele tipo de equipamento.
Olho para trás e para frente, pela distância, nem consigo me comunicar com meus companheiros de viagem. Só vejo os pezinhos a balançar ao léu. Lembro apenas de ter comentado com meu parceiro de caminhada sobre a possibilidade de sermos resgatados por helicópteros. Rimos, de nervoso claro, ao constatarmos que eles também poderiam há muito estar carentes de uma boa revisão.
O fato é que, decorridos uns 40 minutos, sem mais nem menos, o teleférico voltou a funcionar. Para o nosso alívio, meia hora depois, pudemos dar graças a Deus por pisar em terra firme. Com um detalhe: minhas calças e cueca estavam intactas, não sei quanto às dos demais.
Manoel Dorneles
Contando História
O que o tempo altera e vira história
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Dizem que encontraram umas inscrições estranhas na muralha, talvez sinais da dinastia Ming, talvez apenas os rabiscos do Dorneles…