Uma chuvinha em cima

Que se dane o duplo sentido, mas não existe nada mais saboroso do que acordar com o som da chuva tamborilando no telhado de casa!

É claro que isso não se aplica a quem precisa levantar para o trabalho. Ou para trocar uma telha quebrada que provoca goteira. Ou para desassorear uma calha entupida de folhas. Ou para recolher umas roupas esquecidas no varal. Ou para salvar o fusquinha que está sendo levado pela enchente…

Nos demais casos, porém – especialmente para os aposentados, que não precisam levantar cedo (exceto se forem alcançados por alguma das alternativas do parágrafo anterior) – não há situação mais prazerosa do que despertar com a batida surda da água no beiral, virar-se para o outro lado, puxar os lençóis até pouco acima das orelhas e soltar um suspiro de compaixão pelos que não podem usufruir do prazer de continuar na cama.

Na vida real, entretanto, despertar ao ritmo da chuva pode ser poético, mas não leva a nada. É insuficiente. Aqui em Florianópolis, pelo menos, a água que nos chega esporadicamente ao amanhecer só serve justamente para chegar ao amanhecer, e nos dar a satisfação de poder continuar dormindo. De prático, não altera em nada a situação de alerta em que nos encontramos por causa da estiagem.

Faz meses que não chove, e a secura deve durar pelo menos até junho. A foto que ilustra o texto é da lagoa do Peri, que, além de ser um balneário agraciado três anos seguidos com a Bandeira Azul, responde pelo abastecimento de água do Sul e do Leste da Ilha de Santa Catarina. São quase cem mil moradores. Se ainda não deu para imaginar, toda essa parte que aparece seca na foto era coberta por aquele líquido que a gente usa para tomar banho, por exemplo.

A companhia de águas já reduziu em quarenta por cento a captação na lagoa e substituiu a distribuição com o produto extraído de oito poços artesianos perfurados no Campeche. Ainda não se fala em racionamento – como vem ocorrendo em algumas cidades de Santa Catarina – mas os avisos de não lavar o carro, não lavar a calçada, não lavar as partes que não for usar no dia já estão no ar.

É óbvio que não é o fim do mundo – por enquanto, pelo menos. Já passamos por isso. Já passamos até por situação pior, por níveis mais baixos de água e por previsão de estiagem mais prolongada. Mas nunca enfrentamos a situação como uma ameaça paralela: estamos em quarentena, e pode faltar água!

Que fazer se os infectologistas indicam que devemos lavar as mãos várias vezes ao dia e, de repente, numa situação de racionamento, você fica sem a opção da água da rua? E naquelas situações em que se exige quantidade maior de líquido, para lavar roupas, chinelos, máscaras faciais utilizadas numa saída absolutamente inescapável? A quarentena em si já é uma situação atípica, um anticlímax de vinte e quatro horas por dia… Que injeção de ânimo podemos esperar da perspectiva de termos de ficar sem água?

De ameaça em ameaça, de campanha em campanha para incentivar o uso racional da água, capaz de chegarmos, num futuro ainda possivelmente remoto, ao fim de todos os mananciais, como no filme ‘Steel Dawn’ (‘Crepúsculo de Aço’, em português, embora ‘dawn’ signifique amanhecer). Na fita, de 1987, Patrick Swayze vagueia pelo deserto e encontra um grupo de colonos dispostos a tudo para defender a possivelmente única fonte de água do planeta. Detalhe: eles não tinham de enfrentar ao mesmo tempo uma pandemia de coronavírus!

Pensei nisso tudo ao acordar esta semana ao som dos pingos na janela, melodia que silenciou antes mesmo de um me virar na cama e puxar os lençóis até acima das orelhas: definitivamente e infelizmente, aquela não era a chuva que esperávamos e de que precisamos…

Marco Antonio Zanfra

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