Uma certa camisa cor de rosa

(Nem era preciso percorrer o armário todo. Bastava chegar à primeira porta. Estavam todas ali, mais de trinta camisas. Algumas melhorzinhas, como uma Tommy Hilfiger riscadinha de azul, por exemplo. Ou uma Preston Field azul-claro. Ou uma Polo discretamente listrada de cinza. Queria brancas? Tinha. Lisas ou estampadas? Tinha, também! Mas ela foi escolher justamente essa…)

— Bonita camisa! E quase nova!

— Quase nova, não! Zero bala! Nunca usou! Comprei faz uns dois anos, ele agradeceu e enfiou na gaveta, ainda dentro da embalagem. Achei que fosse resgatar depois, mas o gosto dele para se vestir, você sabe, não era lá essas coisas… E depois veio a doença…

— Dá para ver que é artigo fino! Mas, pelo que conheci dele, talvez a cor…

(Ufa! Até que enfim alguma luz brilhante neste ambiente lúgubre! Quem gosta de cor de rosa, amiga? Que homem veste camisa cor de rosa, fofa? Talvez lá em Wall Street. Ou na Faria Lima. Rosa veste homens que cheiram a água de colônia Fraicheur. E não era meu caso!)

— Ah, a cor é linda, mesmo que tenha quem não goste, como ele! Olha como ficou bonito! Ficou um pouco grande, porque ele emagreceu com a doença, mas o conjunto ficou lindo, bem realçado…

(Claro que ficou bem realçado! Essa minha cor de cera combina maravilhosamente com a camisa rosa! Fico parecendo uma velinha de aniversário em cima de um bolo confeitado com glacê de framboesa… As crianças devem adorar…)

— É, pensando bem, ficou bonito! Bem social. Ainda mais com essa calça cinza de lã fria… Vai botar gravata?

— Acho que não, eheh! Ele sempre reclamou que as gravatas apertavam seu pescoço… Não vai ser agora, ahah, que eu vou querer que ele se sinta, aspas, enforcado, aspas, ahah!

 — Ahahah, você não presta, amiga!

(Tirou as palavras da minha boca! Mas acho que ‘não presta’ é pouco! Quem tripudia sobre a opressão que exerce, quem ri enquanto esmaga os tênues sopros de reação dos indefesos, quem com o jugo fere e escarnece sobre as lágrimas dos oprimidos é o quê? Não presta é muito pouco para definir a tirania!)

— Mas ele ficou bonito! Barba feita, unhas cortadas, cabelo aparado e tratado no gel, bem-vestido… Não fosse essa cara de, desculpe a falta de respeito, uva passa, eheh, ia parecer que estava dormindo…

— Ahahah, e ele detestava uva passa! Se ele ouvisse seu comentário, acho que, ahah, ia reagir com aquela boca imunda de sempre, ahah! Mas, nossa, que pecado a gente falando dele assim…   

(Pecado mortal, queridinha! Capaz de justificar minha volta das profundezas para puxar seus lindos pezinhos decorados com Leboutin. Se somar com a afronta de me vestir com uma camisa rosa, capaz de voltar do inferno numa carruagem de fogo conduzida pelo próprio demônio!)

— Ora, não se incomode! Lá, onde ele está agora, há de entender que a gente está brincando para aplacar um pouco a dor da separação. Não é fácil o desenlace, mesmo que a doença deixasse essa perspectiva bastante clara!

— Pois é. Ele era uma pessoa intragável, mas vivemos juntos quase vinte anos… e, sabe como é… até de uma unha encravada você sente falta quando ela deixa de incomodar o dedão de seu pé!

(Essa agora… Uma unha encravada vestida com camisa cor de rosa… O que mais faltava para coroar minha despedida? Um churrasco com pagode?)

— Contratei a Padaria Amália para os salgadinhos e as bebidas… Nada de muita ostentação: alguns canapés, sucos, uísque de segunda linha…

— Não vai sair meio caro? Sei que vocês não estavam muito bem de grana, por causas dos gastos com a doença…

— Ah, tudo bem! Tudo calculado. Está entrando na conta do seguro de vida… Assim como este pretinho básico que vou usar… Você faz alguma ideia de quanto custou?

(Ah, então, era assim?! Não vamos esperar nem fechar o caixão para torrar a grana que eu evitei a vida inteira que ela gastasse?)

— Lindo! E esses óculos escuros? Moschino? Um charme discreto… Você vai ser a viúva mais linda e cobiçada entre todas as seis salas de velório! Aposto que ele levantaria do caixão para te paquerar…

(Nada, querida! Você acha que ela ia dar bola para um cara de uva passa vestido com camisa cor de rosa? Capaz de ter outros interessados, já! Disse bem: mais linda e cobiçada! Capaz de sair da cerimônia já de casamento marcado! Ainda mais com o dinheiro do seguro na conta…)

— Uma bela viúva numa solenidade bonita… E música, vai ter? Sei que ele gostava muito de clássicos, quartetos de corda e tal.

— Sim, um pedido dele: vai tocar Réquiem de Mozart. Mas só quando o caixão estiver descendo para o recinto do forno crematório…

(Epa!!! Espera aí!!! Em que momento de minha vida eu falei que queria ser cremado?! Socorro!!! Me tirem daqui!!!)

Marco Antonio Zanfra

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *