Uma aranha dramaturga

Tinha uma senhora que morava vizinha de casa, na minha adolescência – e de quem fui muito próximo, por ser amigo dos filhos dela – que parecia achar que uma certa aranha estava ligada ao teatro.

“Ela ficou em palcos de aranha”, ela repetia sempre, e eu ficava sem coragem de corrigir, porque talvez essa fosse a única ligação possível dela com as artes dramáticas: simplória, ela mal e mal via programas de auditório na pequena televisão que mais ornava sua sala do que funcionava.

Claro que eu não poderia culpá-la, no entanto: além de possuir um som muito parecido com o de palco, nem mesmo pessoas ditas letradas sabem o que são os palpos das aranhas, aquele apêndice sensorial, que parece uma tesourinha no abre-e-fecha, que os aracnídeos e outros insetos usam na função de paralisar suas vítimas. Talvez se eu explicasse a ela o verdadeiro sentido da frase, minha vizinha concordaria que é muito mais perigoso estar diante das presas famintas de uma aranha do que ser lançada inadvertidamente num palco iluminado.

Mas o exemplo que eu uso, talvez um pouco exageradamente, serve para mostrar que as pessoas costumam entender mal o que os outros pronunciam e repetir da forma como entenderam. Erradamente. Quem não se lembra daquelas irmãs Pepê e Nenê, que cantavam em ‘inglês’ repetindo os sons das palavras que elas captavam, não importando se aquilo não fazia nenhum sentido. Há pessoas que tocam instrumentos musicais ‘de ouvido’; elas cantavam o seu inglês ‘de ouvido’.

Há casos também na língua portuguesa. Um exemplo: nem todos conhecem B. B. King e sua obra, e, portanto, na música ‘Noite do Prazer’, de Cláudio Zoli, quando se canta ‘na madrugada, vitrola rolando um blues, tocando B. B. King sem parar’, as pessoas entendem (e cantam) ‘na madrugada, vitrola rolando um blues, trocando de biquini sem parar”. Ninguém tem, afinal, obrigação de entender o gosto musical de Zoli!

Outro: Belchior, em ‘Como Nossos Pais’, critica a geração que não acrescentou nada a si própria depois do que aprendeu com os pais, atacando com o verso ‘você, que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem’. Nesse caso, dada também a similitude acústica observada em palpos/palcos, o povo acaba cantando ‘você, que é mal passado e que não vê…’ Cá entre nós, o efeito parece até mais dramático.

Na cultura popular, nos chamados ditos populares, há outros exemplos clássicos. Que cor tem um burro quando foge (*), que não tenha a mesma tonalidade se ele estiver pacatamente pastando? Por que a batatinha, quando nasce, se esparrama pelo chão (**) e não fica quietinha debaixo da terra, onde é seu lugar? E como é possível usar um gato, bicho mais indolente do mundo, como companheiro de caça (***)? Se você prestar atenção nesses ditos que o povo propaga – nesses e em muitos outros – verá que eles não fazem o menor sentido!

Em tempo, os ditos populares originais:

(*) Corro de burro quando foge.

(**) Batatinha quando nasce espalha a rama pelo chão.

[***} Quem não tem cão caça como o gato.

Marco Antonio Zanfra

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