Um brinde para aplacar a sede de cultura

Meus exíguos leitores, acostumados aos textos mundanos, prosaicos e medíocres de minha lavra, podem nem acreditar, mas já estive envolvido com atividades culturais!

Bem, mais ou menos culturais…

Explico: no final da década de 1970, meu grupo de amigos tinha sede de cultura. Por isso, a gente bebia. Quantas revoluções culturais não começamos em mesas de bares, para confrontar a onda das discotecas e a invasão da música estrangeira? Quantas peças de resistência da MPB não entoamos no meio da madrugada, bêbados e desafinados, para a fúria ruidosa de uma plateia alienada, sonolenta e vendida aos embalos dançantes?


Éramos jovens e idealistas. Chegamos a montar barricadas para defender nossas raízes. A primeira foi o ‘Núcleo de Resistência Cultural Paulo Pontes’. Em seguida, veio o ‘Grupo Libertando a Terra’, que, a despeito do nome guerrilheiro, não andou pegando em armas. Éramos unidos em torno do ideal de libertar a juventude de Pirituba dos grilhões da música alienígena. A bandeira brasileira estava hasteada no centro de nossa mesa, em qualquer dos bares em que estivéssemos aboletados.


Hoje, reconheço que, mais do que resgatar a cultura popular brasileira, o que nos movia era a vontade de estar bebendo no bar. Nossa grande motivação era a bebida. Organizaríamos um grupo de apoio às leis da física quântica se as reuniões fossem regadas a cerveja.


Devo admitir que a defesa da música brasileira era uma excelente desculpa para encher a cara, porque, mesmo falando engrolado e arrastando as sílabas a partir de certa hora, a gente tinha um estandarte a manter tremulando. O objetivo era digno, e não importava se chegássemos a ele de quatro. Os intelectuais não iam à praia; bebiam. Mas bebiam por uma causa justa.


Nossas ações não se limitavam a erguer brindes a Geraldo Vandré, entretanto: o ‘Grupo Libertando a Terra’ chegou a semear a ideia de um festival de música popular brasileira em Pirituba, tendo como palco o anfiteatro do Parque do Jaraguá. Mas esbarrou numa constatação tão dolorida quanto óbvia: como financiar?

Se os pobres intelectuais mal tinham dinheiro para custear o combustível das reuniões, como bancar um evento da amplitude de um festival de música?


Por uma questão meramente logística, portanto, o 1º MPB de Pirituba foi abortado. E, com ele, foi tremulando menos nosso estandarte. Enquanto durou, pichamos paredes, alguns romances rolaram, fizemos muito barulho. Mas as trincheiras de defesa cultural foram esvaziando enquanto percebíamos que era possível beber por qualquer outro motivo, mesmo que não fosse pela defesa de um ideal. Afinal, a bebida era um incentivo que bastava por si só.

Demorei quase 20 anos para me livrar desse incentivo. E, principalmente por esse motivo, não me sentaria novamente na mesa de um bar para redigir libelos contra a massificação da cultura importada. Falta-me motivação, se me entendem.


Além disso, só mesmo estando bêbado para remar contra a maré da globalização.

Marco Antonio Zanfra

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