Na cama do hospital, já bastante debilitado pelo câncer, André deu um inesperado sorriso luminoso e apontou para a porta:
– Olha aí quem veio me buscar…
Os outros se viraram para a porta do quarto, fechada, sem entender, e André completou, como se falasse o óbvio:
– Vocês não estão vendo meu avô ali? Ele é que vai me acompanhar!
André partiu pouco depois. Não sei se levado pelo avô.
Eu não estava entre aqueles que acompanharam seus últimos instantes na cama do hospital. Quem me contou a história foi Débora, uma ex-namorada dele, de quem eu havia sido escolhido como padrinho, caso eles se casassem. Mas eles se separaram e ficou apenas a amizade. Débora fez o relato como quem acreditasse que o avô dele estivera mesmo ali, para buscar o neto.
Prefiro crer que o que ele teve foi uma visão tranquilizadora para ajudá-lo a enfrentar o desconhecido que tinha à sua frente. Sabia que estava morrendo, e precisava do apoio de algum ente querido que partira antes e que provavelmente conhecia o caminho que teria de ser percorrido. Poderia ter sido qualquer outro, mas o avô deveria ter sido a pessoa a quem ele delegara um respaldo maior em sua vida. Em certas condições, você vê o que quer ver.
Ou será que seu avô tinha ido mesmo buscá-lo? Ou será que as pessoas vêm nos buscar na hora da morte? Quem? Algum parente mais querido? Um enviado aleatório do outro lado?
Não consigo imaginar quem seria meu acompanhante. Minha mãe dizia que, caso fosse meu pai a acompanhá-la na travessia, ela se recusaria a ir. Mas morreu com Alzheimer, e provavelmente nem reconheceria seu marido, caso ele fosse buscá-la.
André era um cara enorme. Mais de um metro e noventa, gordo. Seu tamanho rendera-lhe o carinhoso apelido de Shrek, mas ele não era um ogro. Ao contrário, era um menino. Um menino doce. Daquele tipo de gente que tem de sobreviver a uma guerra nuclear, para que não percamos de vez a crença na humanidade.
Conheci-o quando trabalhávamos no Detran de Santa Catarina. Nesses quatro ou cinco anos de convivência, eu o vi chorar duas vezes: quando um aborto espontâneo tirou dele e de Débora o filho que talvez os mantivesse unidos, e quando o avô dele – o mesmo que viera buscá-lo, creio – morreu. A dor que sentiu quando o avô partiu talvez justificasse a personalização do mensageiro que fora incumbido de buscá-lo.
Certas circunstâncias da morte me fascinam. Não que eu tenha pressa em experimentá-las, mas o desconhecido costuma atiçar mentes curiosas. Principalmente quando essas mentes curiosas atingem idades em que as certas circunstâncias da morte parecem mais próximas, mais factíveis. Tenho insistido no tema, como os leitores podem ter notado, mas isso passa longe de ser uma fixação. É apenas o esboço da pauta de uma matéria que até hoje ninguém escreveu.
Enquanto o dia de cumprir a pauta não vem, vamos aqui especulando…
Zanfra… bom texto, que me levou à seguinte reflexão, já feita várias vezes. O dia em que chegar a hora da minha travessia, quero que o Criador saiba que eu irei reclamando. Sob protestos… inúteis, eu sei. Mas verdadeiros…
Pois é. Se nós, na nossa idade, estaremos cobertos de razão ao reclamar, o que dizer de um rapaz que se foi antes de completar 36 anos?