Tive uma infância pobre, mas remediada, digamos assim. Nunca nos faltou arroz e feijão à mesa; já a mistura, dependia do dia. Carne de boi era coisa rara, mas sempre havia ovo frito, linguiça, às vezes, frango; outras, peixe, no caso sardinha, que era mais em conta. Um frango de domingo rendia bem para quatro pessoas, mas só dois pedaços para cada um. Tinha que sobrar para a janta. A refeição era completada pelas saladas e legumes, que minha mãe sempre cultivou no quintal.

Acho que fui feliz. Não me lembro de ter reclamado de nada. E olha que esse negócio de presente do Dia das Crianças, Papai Noel, aniversário nem passava perto de casa. Nem pela minha cabeça. Me acostumei desde muito cedo a ganhar roupas. Eram mais ou menos bonitas, de acordo com a importância da data. Quando podia, minha mãe comprava, quando não, ela mesma costurava. A exceção para mim era o Natal, um luxo. Sempre vinha um conjunto de short e camisa ou camiseta. Eu ficava todo pimpão.

Vez ou outra, passava um tio ou tia lá em casa, que me dava uns trocados para o doce. Eu corria na padaria do Manelão para comprar o de leite, o meu preferido. Sutil, como uma retroescavadeira ladeira abaixo, minha mãe, certo dia, fez questão de cortar meu barato. Como o padeiro tinha uma égua, que puxava a charrete nas suas entregas pela cidade, ela disse que meu doce favorito era feito com o leite do animal. Parei de comprar no ato, mas gosto de doce de leite até hoje.

Ali pelos três, quatro anos, morávamos numa cidadezinha chamada Divinolândia, perto da divisa de São Paulo com Minas Gerais. Costumava brincar com a molecadinha vizinha na rua mesmo, em frente de casa. Automóveis eram muito raros por ali, o máximo que poderia ocorrer era de sermos atropelados por um carro de boi ou uma charrete.

Certo dia, acho que era mês de outubro, uma tia minha ficou lá em casa, a cuidar de mim, enquanto minha mãe e minha avó, Filomena, mãe de meu pai, viajaram até Aparecida do Norte. Nem lembro se era uma romaria ou coisa assim. Meu pai não foi, tinha que trabalhar na roça. Como toda criança, aguardei ansioso a volta das duas romeiras, a imaginar que talvez, trouxessem ao menos um docinho para mim.

Minha vó, que também era minha madrinha de batismo, me surpreendeu. Me trouxe do Norte, como costumavam dizer naquele tempo, um caminhãozinho de madeira, todo colorido, o mais lindo que eu já vira até então. Acho que nem dormi naquela noite. Só pensava nas “viagens” que faria com o meu “bruto”, além de poder exibi-lo para os meus companheirinhos da rua.

No dia seguinte, logo cedo, eufórico, lá estava eu na rua, que nem asfaltada era, a encher meu caminhão de poeira. Deu a hora do almoço. Minha mãe gritou lá de dentro e eu entrei correndo. Ela não admitia demora. À pergunta dela “Cadê o caminhão?”, respondi, de pronto, “Tá na garagem”.

Só lembro dela, lá fora, a indagar dos vizinhos sobre o brinquedo, que nunca mais foi encontrado. De certo, alguma quadrilha acostumada a roubar caminhões – é, já existia naquela época – aproveitou-se do meu ligeiro descuido. Chorei muito, talvez na certeza, de que nunca mais teria um outro brinquedo como aquele. No fundo, no fundo, sabia que eu deveria me contentar com o eterno destino de sempre ganhar roupas…

Manoel Dorneles

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