Para um camarada que nasceu num lugar chamado “Quebra Machado”, até que Seo Ulysses (isso mesmo, com ípsilon, como ele gostava) foi longe. Nem sei se ainda existe no mapa, depois da represa, mas esse era o nome de uma fazenda de café no município de Caconde, Estado de São Paulo. O fato é que ele veio ao mundo mirradinho (minha vó dizia que ele tinha bronquite e tinha medo de que não sobrevivesse). Sobreviveu, graças a Deus, do contrário, não estaria eu aqui para falar desse sujeito fantástico, que foi (infelizmente se foi há 31 anos) meu pai.
Me deixou adulto, bem-criado, lá do jeito dele; custava nada ter ficado um pouquinho mais por aqui. Era o mais velho dos sete filhos da Dona Filomena. A perda do pai, quando ainda criança, o fez pegar na enxada muito cedo. Não teve muito tempo para estudar, nem terminou o primário, mas aprendeu mal e mal a escrever e fazer contas. Tanto que, mais velho, “deu aulas” e ajudou a alfabetizar alguns adultos nas fazendas por onde trabalhou. Vida dura esta da roça.
Levantar-se muito cedo, às vezes, antes mesmo de o galo cantar; preparar o café, o almoço, a merenda; e partir para o cafezal. Sem-terra, sem-teto, trabalhava duro na capina alheia, de sol a sol, demais da conta para quem conviveu desde a infância com o fantasma do Trypanosoma Cruzis. Explico: foi picado pelo barbeiro, o percevejo que abriga o terrível parasito, e que tem por hábito morar nos vãos das paredes das casas de barro, ainda comuns no interior do Brasil.
Cansado da lida do campo, seguiu os irmãos, que há algum tempo já estavam estabelecidos em São Paulo. Arrumou trabalho em uma estamparia de tecidos no Tatuapé, bairro da Zona Leste. O que ganhava, mal dava para as despesas da casa e o aluguel. A solução estava nas horas extras. Chegava a trabalhar até 18 horas por dia. Para economizar na condução, muitas vezes, ia a pé. Eram alguns quilômetros de caminhada. Ainda não sobrava dinheiro, mas aperta daqui, aperta dali, deu para comprar uma casa, financiada em 24 anos, vizinha de onde é hoje o “Itaquerão”.
Na nova casa, continuou firme nas extras e nas caminhadas até o trabalho – agora, mais de 10 quilômetros –; as prestações do imóvel não davam tréguas. Sobrava pouco tempo para o descanso e o lazer. Mas tentava se divertir, fosse nos passeios com a família, fosse na cervejinha com os amigos. Antes ia à missa e às reuniões na igreja, onde também tinha suas tarefas. Gostava de rezar, de cantar, tanto hinos religiosos, quanto música sertaneja, daquelas de raiz. Falava pouco, mas estava sempre rodeado de amigos; não perdia uma boa piada, um bom caso por nada. Em casa, sempre foi cheio de cuidados conosco. Estava sempre a postos para abrir a porta, independentemente da hora em que eu chegasse. Nem me recriminava, quando eu exagerava na bebida e passava mal.
Nessas horas, corria até a cozinha e me preparava um chá. Não me comprava presentes, mas nunca deixou que nos faltasse nada. Apesar das dificuldades financeiras, nunca me cobrou trabalho, só estudo. Queria me ver formado. Findo o curso, orgulhoso, apresentava a todos os amigos do bar o filho jornalista. Aos 52 anos, o Mal de Chagas, incubado desde a infância, se manifestou e ele teve que se aposentar. O coração começava a inchar, num caminho sem volta, mas ele nunca reclamou de nada. Mesmo adoentado, não aguentou ficar em casa e voltou ao trabalho. Comprou um bar nas vizinhanças e, como sempre, era o primeiro a chegar e o último a sair. Engraçado, que sempre gostou de uma cerveja, mas nunca tomou nenhuma em seu próprio estabelecimento.
Ficou mais 13 anos nessa vida até que o quadro da Chagas se agravou. O coração grande afeta os demais órgãos, que começam a falhar também. No dia 15 de março de 1993, aos 65 anos, o Seo Ulysses nos deixou. Foi embora calado, sereno, como sempre viveu. Um homem comum, com uma trajetória de vida linear, estimado por todos que com ele conviveram, com um coração enorme (nos dois sentidos), assim foi meu pai. A sua bênção!
Pelo visto, foi um verdadeiro herói!