O país estava dividido, sem chance de diálogo. Até porque, a gritaria era tamanha que
não dava para entender o que o outro lado dizia. A multidão aguardava o resultado a um
passo do tumulto que explodiria quando o vencedor fosse conhecido. Beatriz tinha
apenas oito anos, mas já havia se posicionado. Estava à direita, com a mãe, numa ponta
do sofá. Na outra, seu irmão mais velho fazia par com o pai. Sentado na poltrona
preguiçosa, pés no banquinho, o doutor Olímpio expunha pela milésima vez os seus
argumentos. “É claro que ele vai ganhar”, dizia hipnotizado pela TV, luxo de classe
média naquela época. “É verdadeiro, forte, emocional, sem essas gracinhas
perfumadas!”. Dona Marilice rebatia na lata. “Gracinha perfumada, essa é nova! Só por
que ele é jovem e lindo não quer dizer que não saiba se posicionar”. Marco e Bia
ouviam calados as alegações da torcida. Ela, chupando uma bala Chita atrás da outra,
açúcar-calmante; ele, arrancando com os dentes a cutícula do polegar ferido. De
repente, o silêncio. Absoluto. Na sala e na tela. “O júri e a TV Record decidiram dividir
o primeiro prêmio” anunciou o apresentador. “A Banda e Disparada são as campeãs do
II Festival de Música Popular Brasileira!”. Ela foi a primeira a pular, gritando Chico,
Chico! Abraços, beijos. Consenso nacional. Talvez o último, desde então. O seu pai foi
abrir o espumante, sua mãe foi buscar os papos de anjo, comemoração em família.
Porém, a imagem mais forte daquela noite de 1966, a que ela revisitou muitas e muitas
vezes, foi a do irmão, em transe, cantando com Jair Rodrigues.
Prepare o seu coração
Pras coisas que eu vou contar
No Festival seguinte, papai, mamãe e Bia nem piscavam diante da televisão tentando
localizar o rosto do Marco entre tantos Marcos na plateia. O primogênito estava com
dezesseis anos, no primeiro ano do clássico, só tirava notas boas e, por isso, os pais
deixaram que ele fosse a uma eliminatória com o grupo de teatro da escola. Mal sabiam
que a turma tinha falsificado os documentos e aumentado a idade para tentar
acompanhar o espetáculo. Assim, com uma traquinagem aqui, uma mentirinha ali,
Marco foi driblando a marcação cerrada do doutor Olímpio que não queria o filho
metido no grêmio estudantil.
“Fala que que me viu na biblioteca, por favor, maninha!”, ele pediu uma vez, Bia
lembra. Ótimo aluno, carismático, circulava com sucesso entre professores e colegas.
No terceiro ano, foi eleito representante dos alunos. Ela ficou toda prosa, o irmão era a
estrela do colégio! Já os pais, claro, odiaram. A gritaria dominou a casa na inscrição
para o vestibular. Brigas, súplicas, e Marco acabou aceitando trocar filosofia por
jornalismo, curso recém-criado na USP e com melhores perspectivas de emprego.
Chegou à faculdade como líder secundarista e logo estava fazendo freelancers para
publicações que sempre acabavam na mira dos censores. Foi morar com amigos,
raramente aparecia nos almoços de domingo em casa. Na última vez em que foi, avisou
que ia viajar, fazer matéria sobre a estrada da selva, a Transamazônica. Os pais ainda
tentaram argumentar, mas ele mudou de assunto. E desapareceu.
Na semana do seu aniversário de treze anos, Bia estava excitadíssima. A festa seria no
sábado à tarde, um bailinho de garagem com rock e música lenta para as meninas
poderem chegar mais perto dos meninos! Nas fotos, em meio aos sorrisos de aparelho
nos dentes, a tristeza do doutor e da esposa chamava a atenção. Na segunda-feira, a mãe
foi ao cabeleireiro, tinha ficado grisalha de uma hora para outra. E o pai só não
enlouqueceu porque um cliente, coronel do exército, garantiu que “o garoto morreu em
combate, não sofreu, foi disparo de arma mesmo”. Mais de vinte anos depois, o corpo
do Marco foi exumado num cemitério de indigentes e transferido para o jazigo da
família. E Beatriz finalmente aceitou, o irmão querido havia seguido o coração. Na
placa, embaixo do nome dele, ela pediu para gravar:
E já que um dia montei
Agora sou cavaleiro
Laço firme, braço forte
De um reino que não tem rei
Excelente texto. Parabéns, eu me vi naquela sala, no aguardo do resultado do festival e ‘morri’ um tantinho com o Marco
Polarização nos tempos dos festivais! Naquele tempo, pelo menos, não havia fake news! Já imaginou seu Olímpio inventando que o Chico tomava tóchico em mamadeira de piroca?
Esse final me arrepiou. Adoro a maneira como você escreve!