Os sem-noção

zooantropologia é uma ciência fascinante. Ela aborda a zona, digamos, meio obscura entre a zoologia e a antropologia, ocupando-se de espécies que não são nem uma nem outra, se me entendem.

Para ser mais claro, tanto a zoo quanto a antropo possuem bípedes em seu rol de categorias e classes, e a zooantropologia estuda os parâmetros e comportamentos dos que habitam o meio termo entre elas. Para ser mais claro ainda: uma estuda os racionais, a outra, os irracionais; a zooantropologia dedica-se a estudar a chamada twilight zone.

Vejamos: no meio da extensa categoria dos bípedes, emplumados ou não, há uma classe de hominídeos dentro da zooantropologia muito interessante, que possui uma infindável variedade de espécies, todas classificadas sob o nome científico desgracitus irritantius. Assim como acontece com os vários tipos de insetos, eles também têm uma denominação vulgar comum: são conhecidos genericamente como ‘os sem-noção’.

Uns poucos vivem em cativeiro, mas isso não é regra geral. A maioria dos estudiosos acredita que algumas espécies de sem-noção deveriam obrigatoriamente viver segregadas, para não contaminar (e irritar) os racionais com suas idiossincrasias inconvenientes, mas não há lei urbana ou rural que delimite seu habitat. A caça aos sem-noção é proibida e, tanto quanto a captura e aprisionamento de animais silvestres, é considerada crime.

Não há uma característica física que identifique os sem-noção ou os diferencie da classe antropo. Como qualquer bípede antropoide, pode ter hábitos noturnos ou diurnos, acasala e procria de forma igual, é basicamente onívoro. Suas únicas distinções e parâmetros de classificação estão na forma de comportar-se, já que até avaliações intelectuais resultaram inconcludentes.

Há, por exemplo, os sem-noção que obrigam os humanos à sua volta a compartilharem sua opção musical, invariavelmente soturnos bate-estacas ou funks e raps apedeutas; há os que se utilizam de privilégios a que não têm direito, em detrimento dos legítimos beneficiários; há os que se utilizam de aparelhos telefônicos ou sonoros em situações inconvenientes – seja dirigindo, seja em ambiente desaconselhável – e ninguém tem absolutamente nada a ver com isso, embora todos tenham muito a ver com isso.

Há muitas, muitas, muitas outras, inclusive aqueles que endeusam entidades abomináveis e querem impor sua iconodulia aos seres ditos pensantes, seja pela ocupação de ambientes públicos, seja pela ameaça pura e simples. O sem-noção desconsideram a vontade da maioria, questionam as decisões majoritárias e, em comparação com os membros da filo zoo, perdem até no senso de ridículo.

Em suma, para não nos alongarmos e chatearmos os atribulados leitores, há várias espécies de sem-noção, todas apresentando em comum um comportamento deletério e aparentemente normal do ponto de vista deles, e todas sem um mínimo de noção de sua própria condição de sem-noção.

Enquanto isso, a despeito deles, a Humanidade vem evoluindo visivelmente através dos tempos. Inventou a roda, descobriu o fogo, criou a escrita. Hoje, faz cópias em três dimensões, reconstrói órgãos humanos com fibra carbono ou células-tronco. Já pousou na Lua e tem equipamentos para descobrir novos planetas habitáveis…

Ainda não descobriu a cura do câncer ou da gripe, mas inventou medicamentos que garantem sobrevida em ambos os casos. Voa em aparelhos mais pesados – muito mais pesados, aliás – que o ar, torna potável a água dos oceanos, consegue indicar uma rua numa cidade desconhecida através de uma engenhoca que está voando a milhares de quilômetros de altitude…

Mas não descobriu ainda uma forma de adestrar e tornar úteis os sem-noção. 

Marco Antonio Zanfra

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