Os dentes da justiça

Nunca gostei do Cacique. Figurinha soturna, ranzinza, sempre aboletado naquele mesmo canto. A bem da verdade, devo dizer que o Cacique também nunca gostou de mim. Até aí, tudo bem. Eu cá, ele lá. Mas a história não é bem essa, pelo menos por enquanto.

Depois de tantos anos, decidi, não exatamente por querer, mas por dever, confessar. Fui um delinquente infantil. Forte, né¿ Pois eu assumo. Não me ufano, mas também não me condeno a penas mais rigorosas do que aquela que recebi. Foi bruta, doída. E olhem que delinqui por, no máximo, um minuto e meio. E, além do mais, eu tinha oito anos.

O Bixiga do início dos 60 era um bairro de trabalhadores italianos, portugueses, espanhóis, alguns japoneses e dos pretos da Saracura, numa bela paleta de raças, cores e dialetos. Os filhos essa gente toda tinham o morrinho para brincar, uma rua de terra de uns duzentos metros, se tanto, continuação da Santo Antônio.

Lá a gente praguejava em bom calabrês, empinava pipa nos dias ventosos de agosto, jogava bolinha de gude e invadia quintais para beber água depois de uma entre muitas partidas de futebol.

Dona Amélia tinha uma vendinha de secos e molhados na Conselheiro Carrão, bem na boca do morrinho e bem perto da curva da Marques Leão. Havia de tudo naquele espaço escuro e de vários odores. Pão, queijo, mortadela, presunto, leite, cereais, açúcar, vassouras, óleo, um pouco de tudo. A freguesia comprava fiado e a conta chegava no fim de cada mês, tudo marcado direitinho na caderneta.

Minha avó materna morava no morrinho e o lanche da tarde em sua casa era sagrado. Café com leite, pão com manteiga. Mas era preciso comprar o pão lá na dona Amélia. Minha avó me deu o dinheiro e lá fui eu. Entrei na vendinha e fiz o pedido. A dona Amélia estava abaixada, de costas, às voltas com caixas que estavam no chão, lá no fundo da venda. Não me ouviu.

Antes de repetir o pedido, percebi que, à minha direita, sobre o balcão, havia um baleiro cheio de pés-de-moleque.

Ideias heterodoxas vieram à minha cabeça. Com o canto do meu olho direito, fixei-me no pote. O esquerdo estava atento à dona Amélia, ainda abaixada lá o canto. Caminho livre, abri o baleiro, peguei um pé-de-moleque e o engoli como um selvagem.

Senti-me poderoso, a ponto de repetir o roubo (ou furto), e lá foi um segundo pé-de-moleque para o bucho. Pegaria um terceiro se a dona Amélia não tivesse se recomposto.

– Dona Amélia, minha avó mandou comprar um filão de pão.

Paguei a conta e ao sair da venda, para aliviar minha consciência precocemente pesada, ensaiei um afago na cabeça do Cacique, que me olhava fixamente desde havia muito.

Antes que me aproximasse um pouco mais, ele abocanhou minha mão direita e mordeu com vontade, com raiva. O Cacique acabara de fazer justiça com os próprios dentes. A mim só me restou correr da cena do crime em desabalada carreira. Evadi-me sangrando e engolindo as lágrimas com sabor de caramelo e amendoim.

Muitos anos depois, já adulto, voltei à venda da dona Amélia, já velhinha, e confessei a ela meu crime, digamos, famélico. Em vez de me censurar, riu alto. Perguntei quanto custava um pé de moleque. Calculei juros, correção monetária, reparação moral e limpei minha barra.

Ao sair da venda, olhei para o cantinho do Cacique, mas ele não estava mais lá. Certamente, já brincava na ponte do arco-íris, à espera da dona Amélia, com quem se encontrou pouco tempo depois. Quanto a mim, bem, quanto mim, nunca mais delinqui.

Carlos de Oliveira

2 comentários

  1. Excelente. Memórias infantis numa São Paulo que, infelizmente, não mais existe. Morava na zona leste nesse tempo, só conheci o Bixiga, suas ladeiras e até uma bica d’agua, depois de adulto, quando estudei na Casper Libero. O curioso é
    que parece que sempre morei ali

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