O Rei Mudo

Nesta história altruísta, o mundo animal imita o mundo real com intrigas, inveja, luta por poder e até golpe de estado. Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência.

Num reino, não muito distante do nosso mundo e nem muito diferente, vivia um majestoso Leão. Mas, ele não nasceu nesse lugar. Veio de terras distantes, além-mar, do continente africano, onde nascem os leões.

Foi enviado para ser o Rei da Floresta Tropical, recém-descoberta no Novo Mundo. Sua missão? Colocar ordem na casa. Implantar na Floresta Tropical as leis e regras da boa convivência social, costumes antigos e respeitados que Rei Leão aprendeu em sua terra, durante anos de estudos com o objetivo de se tornar um dirigente justo.

Ficou surpreso com a nova casa.

A Floresta estava um tanto bagunçada quando ele chegou discretamente para não causar alvoroço. Seus habitantes desenvolveram certos costumes e foro privilegiado por prerrogativa de raça. Como os predadores onça parda, a hiena e jacaré do papo amarelo que caçavam para se alimentar, mas, às vezes matavam por puro prazer. Isso deixava alguns bichos revoltados. No entanto, apesar das constantes reclamações, a coruja do Conselho Animal, uma espécie de suprema corte, sempre alegava presunção de inocência.

Ou, então, mandava soltar os amigos presos, como fez com a hiena e o sapo, ao revogar os entendimentos da corte sobre prisão após condenação em segunda instância. Parte dos bichos fez até passeata de protesto, mas, de nada adiantou. O sapo e a hiena saíram passeando de mãos dadas.

Por isso, chamaram um Rei de outras terras, totalmente isento, cujas ordens deveriam ser incontestáveis. O Rei Leão Felipe I.

Outros privilégios também deveriam ser alterados, como o fato dos macacos-prego, também chamados de micos de topete, irrequietos e barulhentos, colherem todas as bananas verdes e escondê-las até amadurecerem. Com isso, eles dominavam o comércio de bananas e só as doavam para seus amigos e aliados. Um verdadeiro truste animal.

Essa espécie de suborno, por exemplo, atingia os passarinhos, que comem frutas e depois expelem suas sementes junto com o cocô, adubando a terra onde a semente cai. Agora, eles somente semeavam onde os macacos mandavam, em troca de banana. Ou seja, perto de suas moradias, criando assim mais frutas à sua disposição, e dessa forma, alimentando a corrupção.

O sapo do brejo também não era um vizinho dos mais queridos pela bicharada. Ficava até tarde da noite cantando e coaxando na lagoa do seu sítio. Era um barulho irritante que não deixava os moradores dormirem direito. Na floresta, ainda não havia lei do silêncio.

Por esses pequenos exemplos, dá para imaginar o trabalhão que o Rei Leão teria em seu reinado tropical.

A Floresta, apesar desses desmandos, era exuberante, com a maior biodiversidade do planeta ou mais de 55 mil tipos de plantas diferentes – equivalente a algo em torno de 25% dos tipos de plantas existentes em todo o planeta. Ou seja, não podia ser relegada a uma ocupação predatória.

Nela existiam há muitos anos, algumas centenárias, árvores como o Jacarandá Copaia, Anacardium Giganteum, popularmente conhecida por Caguaçu, Carapa Guianensis, Bagassa Guianensis, um exemplar de grande porte, que chega a atingir 50 metros de altura, a Manikara Huberi ou Maçaranduba, que também atinge 50 metros de altura, entre outras maravilhosas espécies de madeiras de lei.

Animais então, nem se fala. Muitos, muitos animais. Onça pintada, anta, lobo-guará, veado, capivara, lontra e tatu são os mamíferos mais conhecidos, além das muitas espécies de primatas. Distintas variedades de jacarés, tartarugas e cobras, como a cascavel, a jararaca e a sucuri. Macacos, tamanduás, sapos, borboletas, pássaros de várias espécies, como a belíssima arara azul, papagaios, araras, maritacas, garças, tucanos, pardais, gaviões, corujas. Para completar esta rede, insetos como abelhas, vespas, besouros, cupins e formigas, além de mosquitos, e todo tipo de peixes. Entre eles, Tucunarés, surubins, piranhas, jaús e tambaquis, peixe-boi, pirarucu, pintado, traíra, pacu, corvina, cavala, lambari e dourado.

A Floresta Tropical realmente abrigava uma grande biodiversidade e o Rei Leão estufou o peito de orgulho em poder administrar essa floresta considerada um pulmão verde do mundo. 

Tudo na Floresta tinha sua razão de existir. Até as formigas que fazem buracos na terra, facilitando o crescimento das raízes das árvores. Como as minhocas que deixam a terra mais fofinha para as plantas buscarem suas energias na terra misturada com os restos das folhas que viram adubo.

Logo o Rei Leão começou a dar ordens e distribuir tarefas. Cada um deveria fazer sua parte no trabalho de preservar as belezas naturais do lugar e garantir a boa convivência entre as espécies.

Todos passaram a se dedicar aos afazeres da Floresta Tropical e realizar sua parte nas tarefas do dia-a-dia.

O passarinho passou a distribuir sementes de árvores e flores nativas para garantir o reflorestamento e a preservação das espécies em toda a extensão do Reino. Os barulhentos macacos a pular de árvore em árvore, limpando os galhos secos e assim, permitindo que novos galhos, bonitos e viçosos surgissem na floresta. Eles também se encarregam, a partir de agora, de comer as frutas e jogar fora o caroço, que é a semente que vai se transformar em outra árvore.

As abelhas providenciam a polinização das flores. Polinização é o transporte de pólen (pozinho contido nas pétalas das flores) através do vento e de outros seres vivos, como as abelhas, besouros, borboletas, aves. O pólen da parte masculina da flor (antera) é transportado para a parte feminina (estigma), realizando a reprodução vegetal.

As minhocas passaram então a trabalhar arduamente andando por dentro da terra, fazendo com que ela fique bem fofinha, para facilitar a penetração das raízes e para produzir o humos, matéria orgânica do solo resultado da decomposição de elementos como plantas, folhas, raízes, minhocas, formigas, cupins, bactérias e fungos.

Formigas, o bicho preguiça, lobos, jacarés, e até mesmo as cobras como a sucuri e a temível cascavel, que habitam essa linda Floresta, passaram a desempenhar, cada um, uma tarefa bem definida, nem que fosse aquela de comer outros bichos (como o jacaré e a cobra), para garantir o equilíbrio ecológico, ou seja, não existir mais animais de uma espécie do que de outra. O jacaré, por exemplo, come o excesso de peixes, principalmente o excesso de piranhas, peixe que come outros peixes menores.

Até a formiga, que a gente acha que só serve para cortar as folhas das plantas, tem sua função ecológica. Ela cava pequenos túneis por baixo da terra que abrem caminho para as raízes das árvores e facilitam a irrigação do solo pela água das chuvas.

Todos os elementos, trabalhando juntos pela sobrevivência, criam um ambiente adequado para o desenvolvimento da vida, para o crescimento da flora, que são as árvores e flores, e da fauna, que são os animais que moram nas florestas.

A voz do chefe

Nessa Floresta, o novo habitante muito importante passou a garantir a ordem, a paz e a harmonia. Rei Leão Felipe I, tornou-se, então, uma espécie de chefe da floresta. E ele passou a desempenhar com muita energia e seriedade sua dura tarefa.

Todo dia, ao nascer do sol ele se levanta, se espreguiça e vai para o topo da montanha mais alta, cumprir sua missão incansável: rugir bem forte para acordar todos os outros bichos e anunciar o início de um novo dia de trabalho.

Para fazer isso, ele solta seu longo e alto rugido: “Roarrrr, roarrrr. Acordem seus bichos. Vamos trabalhar”!

Às vezes, os bichos até se assustavam com tamanho barulho do novo chefe, Felipe I. Uma vez, o macaco se agarrou pelo rabo quando ia caindo do galho onde dormia e um peixinho quase pulou para fora da água.

Outros bichos tinham medo do rugido do Leão e, por isso, num belo dia de sol, enquanto seu Rei Leão Felipe I dormia, o bicho preguiça convocou uma reunião de toda a bicharada.

Inflamados pela preguiça, pelo sapo e pelo esperto macaco prego, chegaram à conclusão de que deveriam encontrar uma forma de fazer o Leão parar de rugir todo dia cedo. A saída foi pedir a ajuda da Bruxa má.

Ela então preparou uma poção mágica que Felipe I deveria beber.

Os bichos encarregaram o passarinho de jogar a poção no lago, onde todo dia, no final da tarde, o Leão ia beber água. E assim foi feito.

No dia seguinte, depois de mais uma árdua jornada de trabalho, o rei Leão foi ao lago. Bebeu longos goles de água, sem saber que essa água continha uma poção mágica e foi dormir.

Quando o rei Leão acordou em sua caverna ao lado da montanha, logo cedinho, se espreguiçou e foi para o ponto mais alto da montanha, como fazia sempre, ao raiar do dia.

Abriu sua grande boca para soltar seu temido rugido. Porém, nesse momento, não saiu nenhum som saiu de sua boca. Ele tentou novamente: respirou fundo, estufou o peito, abriu a boca e soltou o ar. Nada! Silêncio total. E como o leão nunca gravou sua voz, já que na floresta não tem gravador de som, rádio, iPod e essas coisas, não teve alternativa. Não conseguiu resolver o problema. Sua voz não saiu!

Depois de várias tentativas frustradas, o rei Leão abaixou a juba, colocou o rabo entre as pernas e desolado e triste voltou para sua caverna. Ficou escondido em sua toca por vários dias, com muita vergonha do que tinha acontecido com ele.

O rei Leão ficou mudo! Como se tivesse sido vítima de uma espécie de lei da mordaça da suprema corte.

Muitos bichos comemoraram, mas, para alguns conservadores, o complô foi um tipo de golpe de estado. Fizeram até uma eleição fraudulenta para substituir o Rei Leão. A preguiça saiu dançando de alegria, meio desengonçada, com seus passos lentos e arrastados. O macaco batia palmas. Nada mais de sustos, nem a obrigação de acordar todo dia bem cedo para trabalhar. Foi uma festa que durou até a manhã seguinte. A preguiça, por sua vez, podia agora ficar à-toa, sem fazer nada. Iria dormir de sol a sol. De noite, de manhã e de tarde.

Porém, logo depois, uma comissão de bichos de outros países considerou que houve fraude na contagem dos votos. E o sapo eleito teve que renunciar.

O tempo foi passando e como os bichos já não acordavam cedo, e sem um chefe para dar ordens, o trabalho de preservação da floresta foi ficando atrasado.

Os passarinhos não conseguiam distribuir todas as sementes no mesmo dia e elas foram se estragando. Teve até peixe que quase morreu por falta de oxigênio na água, e mudou de rio, já que os demais animais, como as antas e pacas, que tomam banho nesse local não conseguiam mais fazer a mesma movimentação de água (a aeração) no pouco tempo que tinha de trabalho durante o dia. A anta era um dos animais que mais acordavam atrasados para trabalhar. Sem peixes para comer, os jacarés fizeram uma passeata de protesto.

E assim, a floresta foi ficando velha e feia e os animais cada vez mais sem comida. As árvores frutíferas demoravam mais a crescer. O tamanduá resolveu tirar férias e com isso, as formigas, que ele se encarregava de comer, se multiplicaram muito rapidamente e acabaram com todas as mudinhas de plantas. Com isso, as formigas começaram a dominar o cenário da floresta.

Tudo parecia um caos, uma grande confusão. Sem cuidados e sem o trabalho dos vigilantes, os papagaios e as maritacas, que sempre avisavam quando algum problema aparecia, a floresta ficou exposta aos incêndios espontâneos provocados pelo aumento do aquecimento global e alguns até criminosos.

Depois de algum tempo, alguns animais começaram a perceber que a floresta estava mudando. Estava morrendo. Ficaram preocupados. Era preciso tomar uma decisão urgente. A preguiça pensou, pensou. Demorou muito tempo, mas chegou a uma conclusão: novamente convocou a bicharada para uma reunião. Depois de muitas brigas e acusações mútuas, sobre quem era o responsável pela bagunça, resolveram chamar a Fada Madrinha para desfazer o feitiço da bruxa.

De novo, o passarinho ficou encarregado de jogar a nova poção mágica no lago. Agora, uma poção do bem.

O rei Leão, mesmo mudo, continuou seu trabalho de caçar, comer, beber água do lago e dormir. E, nesse dia não foi diferente. Depois de comer muito, sua majestade bebeu quase toda a água do lago no final da tarde e foi para a caverna dormir.

No dia seguinte, acordou como sempre junto com o nascer do sol. Se espreguiçou e sem querer soltou um pequeno rugido. Surpresa! Nem ele acreditou no que estava acontecendo. Parece que sua voz tinha finalmente voltado.

Correu para o alto da montanha, estufou o peito e soltou seu famoso rugido: Roarrrr, roarrr. Que maravilha. Sua voz saiu forte e limpa. Então, entusiasmado, ele gritou: “Vamos acordar pessoal. Tá na hora do trabalho. Vamos recuperar o tempo perdido e garantir a vida no nosso reino”!

E assim foi feito. A floresta se recuperou e os bichos voltaram a trabalhar com amor e sem reclamar do barulho do rei Leão. 

E tudo voltou ao seu lugar, até prova em contrário ou trânsito em julgado.

Nereu Leme

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