Era um cachorro tranquilo, sossegado. Às vezes sossegado até demais, chegando a ser folgado! Daqueles que chegam em uma reunião canina e vão logo mudando a pauta, para tratar de assuntos de seu interesse. E, quando algum cachorro lhe pergunta alguma coisa indiscreta ou pessoal, se faz de desentendido, como se diz na gíria, dá uma de “migué”. Daí ter ganho o apelido de Miguel.
Alto, magro, tinha uma grande cabeleira caindo na testa, estilo “pega rapaz”. Andava gingando, com jeito malandro folgado, quase como se estivesse dançando a música Saturday Night Fever, aquela do musical.
Um verdadeiro cão vira-lata!
Gostava de ficar encostado na esquina dos becos da cidade, paquerando as cadelinhas. Eventualmente se juntava com sua turminha de cães de rua para virar lata de lixo ou correr atrás de algum bichinho indefeso.
Tinha um seguidor fiel, o jovem Noah, da raça Border Collie, que se perdeu e adotou os arruaceiros como companhia. Era grande fã do Miguel e gostava de cantar.
Um dia, cantando uma música pop, Noah percebeu que Miguel começou a dançar e deslizar para os lados e para trás. Pronto. Parecia o passo back-slide (deslizar para trás), do cantor falecido Michael Jackson.
Noah não teve dúvidas. Tascou no seu amigo e ídolo o apelido de Miguel Jackson. Foi aí que Miguel Jackson pirou de vez. Saiu dançando e cantando Billie Jean.
Logo, sua turminha de cães e os meninos da rua, começaram a chamá-lo de Miguel Jackson. Pensam que ele se incomodava? Que nada! Na verdade, ele gostava muito. E foi aí que as coisas se complicaram para ele.
Tudo começou quando o cachorrão Miguel Jackson, antes disso também chamado de “cão-jacaré”, por causa do tamanho de sua boca enorme, resolveu comer ou morder tudo que lhe aparecia pela frente. Sempre agindo como um verdadeiro ídolo pop e imaginando que estava comendo grandes guloseimas. Parecia vesgo ou míope. Ou apenas enganava a si próprio.
Certa vez cortou ao meio o tronco de uma pequena árvore da rua, pensando que fosse um osso de dinossauro. Noutra, lambeu, até ficar exausto, uma sola de sapato velho, imaginando ser um bife acebolado. Parece incrível? Pois ele já roeu tijolo achando que era rapadura. Também correu atrás de uma galinha imaginária e terminou abraçado com um espanador.
Um belo dia, Miguel Jackson ficou até tarde, no meio do mato, correndo atrás de um rato que pensava ser um saboroso coelho. Mas, toda vez que ele se espreitava silenciosamente até bem perto do coelho (quer dizer rato), Toda-prosa, uma coruja brincalhona, piava e espantava o rato. Cego de raiva, o cachorrão avançou para cima da coruja. Abriu o bocão e cravou dentes em tudo que apareceu entre suas mandíbulas. Achou a coruja com gosto estranho, mas se resignou. Talvez seja assim mesmo, pensou. Bicho feio deve ter gosto amargo e pegajoso. Tentou ir atrás do saboroso coelho (que nós sabemos ser um rato). Sua última refeição, a coruja, no entanto, enjoou seu estômago de avestruz, daquelas que comem de tudo, até pedra.
Começou a sentir tonturas, a vista ficou mais embaçada do que era normalmente e o canzarrão saiu cambaleando floresta afora, quando, num dado momento, passou a andar apenas sobre as pernas traseiras.
Será que ele estaria imitando um homem? Não só estava imitando, como estava se achando um homem. Miguel Jackson assumiu o apelido dado pelo seu amigo e fã Noah e assumiu que era Michael Jackson em pessoa. Carne e osso. Ressuscitado. E saiu gingando pelo bairro, de vez em quando deslizando para trás. E latindo no ritmo de Thriller e Billie Jean.
Passava pelos seus amigos cães e nem olhava. Indiferente, fingia que não conhecia a Lassie descabelada, Tim Tim acanhado e toda a turma de vira-latas das redondezas. “Ô Miguel Jackson! Não me conhece mais?”, perguntava espantada a Lilli, que já tinha sido até namorada do cachorrão. Quando Noah se aproximou e Miguel Jackson rosnou para o pequeno amigo, a cachorrada se irritou e decidiu dar uma lição no grandalhão metido a besta. “Miguel Jackson ficou louco”, disse o cachorrinho Totó.
A turma toda então saiu latindo atrás do amigo, tentando morder uma de suas patas. Miguel Jackson deu um chute à la Pelé em um dos cachorros, o que provocou ainda mais a indignação da cachorrada. Perseguiram o cachorrão com a intenção de acabar de uma vez por todas com o amigo ingrato. Agora morrendo de medo de ser linchado, Miguel Jackson se escondeu em uma cabana velha e abandonada no meio da floresta, lá perto do local onde ele havia comido a coruja.
A cabana estava cheia de morcegos. Logo Miguel Jackson pensou que fosse o Batman que tinha vindo para salvá-lo. A essas alturas, os moradores do local já haviam chamado a polícia para prender o cachorro louco que pensava ser um homem. Quando começou a ser mordido pelos pequenos vampiros Miguel Jackson saiu de mãos para cima, ainda andando sobre as duas patas traseiras, alardeando: “Não me matem. Eu sou o Michael Jackson”, e dançava e cantava: “Billie Jean is not my lover…”
Os policiais o arrastaram para fora da cabana, deram-lhe um calmante e Miguel Jackson ficou ali, deitado na grama, embaixo de uma árvore, pensando na vida e nas suas estripulias. De repente, alguém falou com ele, de cima de um galho da árvore: “Tá mais calminho, Miguel Jackson?”, disse a coruja. “Meu Deus”. Retrucou o cachorro, esfregando os olhos. “Estou no céu. Estou vendo a coruja que eu comi hoje cedo.” Toda-prosa respondeu do alto de sua sabedoria: “Ô Miguel Jackson. Você está louco. Ninguém me comeu não”, disse a velha coruja. “Então quem eu comi?”, perguntou Miguel Jackson. “Você comeu um sapo barrigudo que eu enfiei na sua bocarra, seu doido”.
Miguel Jackson começou a se sentir enjoado de novo. Saiu correndo feito um louco e se atirou no lago para ver se passava o gosto de sapo na sua boca. Ficou deitado na água por dois dias, até que saiu envergonhado, cabisbaixo e foi procurar seus amigos vira-latas. Noah ficou dois dias sem falar com ele. Depois, recomendou que ele procurasse um oculista e parasse de andar sobre apenas duas patas.
Em tempo, um cachorro pode ser considerado um pouco míope para os nossos parâmetros. Os cachorros enxergam com nitidez objetos que estejam, no máximo, a seis metros de distância, enquanto para os humanos essa distância é de 22 metros.
Mas, Miguel Jackson descobriu que não precisa de óculos! Ele utiliza outros sentidos para compensar essa aparente limitação. Menos talvez quando confunde coruja com sapo, em sua cabeça doida. Noah parou de chamá-lo de Miguel Jackson. A partir daí, ficou apenas com o nome ou apelido de Miguel. A cachorrada comemorou!