Enquanto o sujeito aboletado na cadeira presidencial em Brasília, diante da vitória do professor Pedro Castillo sobre Keiko Fujimori, lamenta que “Perdemos o Peru”, eu retorno ao início dos anos 1990, quando estive naquele país, então presidido por Alberto Fujimori, pai da candidata derrotada.
Minha missão à época era cobrir o rali de motocicletas conhecido como Rali dos Incas, sempre disputado no Peru, mas que naquele ano, estendeu-se até o Rio de Janeiro. Com o nome de Lima-Rio, teve a organização da equipe do italiano Franco Acerbis, que também participava do Paris-Dacar, Rali dos Faraós, entre outros. Eram tempos sombrios para os peruanos naqueles anos. Basta dizer que a fraca iluminação noturna existente, vez ou outra, era incrementada pelo clarão de bombas detonadas aqui ou ali, quase sempre pelos guerrilheiros do Sendero Luminoso, partido de oposição ao então presidente.
O centro de Lima era um caos completo. Misturavam-se prédios históricos, ainda do tempo da colonização espanhola, e cortiços a céu aberto (neste caso, literalmente). Explico: como lá, dificilmente chove, as casas simplesmente não tinham (não sei se já têm) telhados convencionais como os nossos. Vistas do terraço do hotel, empoeiradas, lembravam mais as ruinas de cidades históricas no meio do deserto do Oriente Médio. Dizem que a paisagem melhorou muito nos dias de hoje. Não muito distante, o cenário mudava totalmente, quando se chegava ao rico e simpático bairro de Miraflores, às margens do Oceano Pacífico, uma espécie de Morumbi deles.
Éramos um grupo de umas cem pessoas. Motociclistas, mecânicos, organização e acompanhantes, pessoal acostumado a correr o mundo atrás de ralis. Brasileiros, apenas uma meia dúzia e os membros da equipe Staroup, os dois pilotos André Azevedo e Klever Kolberg, o mecânico Luís e o assessor de imprensa, este que vos escreve. Na primeira etapa, os competidores largaram de madrugada, pela Carretera Panamericana, rumo à cidade de Ica, 300 quilômetros ao sul de Lima. É uma espécie de oásis, em meio ao deserto de Ica, vizinho das linhas de Nazca, encostado no Pacífico. A região é grande produtora de uvas, por conseguinte, bons vinhos e, na minha modesta opinião, um dos melhores piscos do mundo.
Pouco depois da largada, o restante do grupo embarca nos ônibus com o mesmo destino. Mal entramos na rodovia, ainda escuro, o primeiro susto. Fomos parados por um grupo de homens fortemente armados. Eles percorrem os veículos, examinam banco por banco, passageiro por passageiro e, após muita conversa, nos deixam prosseguir. Segundo o nosso motorista, eram do exército peruano, mas ainda acho que eram membros do Sendero Luminoso. A verdade é que corremos um certo risco até descobrirem os reais motivos de nossa viagem. São quatro horas de percurso. Pelo caminho, a paisagem é desértica, mas de tempos em tempos surgem nas encostas dos Andes as haciendas, onde são cultivados batatas e os famosos milhos peruanos, alguns coloridos e outros, cujas espigas pesam quase um quilo. O exagero se deve às terras locais, beneficiadas pelo salitre, que desce da montanha após o degelo do verão.
De Ica, o rali segue para Cusco, a quase 3,5 mil metros de altitude, cruzando a cordilheira – dizem que para aterrissar no aeroporto local, o avião não desce, sobe. Eu ainda passei mais um dia em Ica e aproveitei para sobrevoar os famosos desenhos do deserto de Nazca. Junto com um casal de norte-americanos, aluguei um teco-teco no aeroporto e partimos. Enjoei até não poder mais, mas fotografei o macaco, a aranha, o beija-flor e as linhas paralelas, que dizem ter mais de sete quilômetros de extensão. Desembarquei crente que iria ganhar o Esso de fotografia, mas ao conferir o resultado, descobri desolado que o filme, mal ajustado, não rodou na máquina – é, em 1991, ainda se usava Canon ou Nikon de filme de rolo.
Cusco é sensacional, uma bela cidade que preserva não apenas a herança espanhola, mas o legado indígena, espalhado por todos os cantos. Sem falar na mágica e misteriosa Machu Pichu, no município de Urubamba, departamento de Cusco. Depois de conhecer os sítios arqueológicos da região, voltamos para o hotel no centro da cidade, onde tivemos outro susto. A poucas quadras de onde estávamos guerrilheiros explodiram duas bombas. O clima era tenso. Dois dias depois, enquanto os competidores seguiam com suas motos para Puerto Maldonado, departamento de Madre de Dios, na fronteira com o Brasil, o restante da comitiva esperava pelo combustível para o avião, em falta nos mercados locais. Somente após a intervenção do cônsul italiano, o governo peruano liberou o querosene para o nosso jato decolar.
Para agravar o quadro, nesse trecho, o avião de apoio ocupado por Acerbis e seu staff teve que fazer um pouso de emergência em plena floresta amazônica. Felizmente, ninguém se machucou. A situação era tão dramática que, durante o voo de Puerto Maldonado para Rio Branco, no Acre, os integrantes do nosso grupo celebraram com uma salva de palmas o anúncio do comandante de que estávamos entrando em território brasileiro. Para finalizar, 20 dias depois da largada em Lima, todos (competidores, staff, imprensa e acompanhantes) chegaram sãos e salvos ao antigo Autódromo de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, após terem passado por Boa Vista, Cuiabá, Coxim, Campo Grande e São Paulo. Em tempo: o vencedor desse que foi o primeiro e único Rali Lima-Rio foi o piloto italiano Fabrizio Meoni, que morreu no Rally Dacar de 2005. Não sei quanto aos dias de hoje, mas ouso dizer que o Peru daqueles tempos, definitivamente, não era para amadores.
Manoel Dorneles
Delícia de aventura e de história!
Amei! Parabéns, Dorneles!