Não tem tu, vai tu mesmo!

Meu amigo Pedro, radicado em Santos há pouco mais de cinco anos, tenta impedir que seus filhinhos paulistanos, Maria Alice e Miguel, 8 e 12 anos, usem o tu, muito comum no dia a dia dos moradores da cidade. Não é a sonoridade da pronúncia do tu que o incomoda, exatamente, mas o modo como ele é empregado.

Em vez do “tu vais”, “tu fazes”, “tu tens”, a forma castiça, as crianças ouvem de seus amiguinhos no colégio “tu vai”, “tu faz”, “tu tem”. Não deve ser fácil a tarefa desse pai zeloso: a proibição funciona em casa, mas e no restante do dia? Além disso, obrigá-los usar a forma correta, aqui, pode até soar pernóstico e antiquado.

Embora esteja a cerca de 70 quilômetros da capital paulista, onde o pronome você predomina, Santos adotou o tu. Deve ser a única cidade do Estado com esse hábito no falar cotidiano. É herança que os moradores desta cidade portuária receberam dos portugueses, e depois dos imigrantes italianos, que aqui desembarcaram.

Estabelecido em Santos há quatro anos, a princípio, estranhei o apego dos santistas ao tu. Descobri na prática que os locais dispensam um outro tratamento a quem usa o você. Se digo “Você me vê uma água”, o vendedor do quiosque me confunde com um turista e cobra mais caro. Sou teimoso, pois se dissesse “tu me vê uma água” sairia bem mais em conta. Como não passo o dia inteiro a comprar água na praia, contin uo firme com o meu você. Meu filho, bem mais esperto e maleável do que eu, já adotou o tu santista e se sente quase um caiçara.

Acho um exagero também o uso do tu como pronome reflexivo. “Vou falar pra tu” ou “Vê se isso serve pra tu”, em vez de “Vou falar pra ti” ou “Vê se isso serve pra ti”. O tu, muitas vezes, até substitui o termo impessoal “gente”. Ao explicar um determinado roteiro, o Uber santista me diz “se tu entrar (se a gente entrar) a direita, chega lá no evento”.

O tu também é de uso comum nos estados do Nordeste, no Pará e Maranhão e sul do País, principalmente no Rio Grande do Sul e Santa Catarina. A diferença é que os gaúchos têm uma preocupação maior com a conjugação correta: “Tu podes”, “tu entendes”, “tu queres”, e por aí vai. O mesmo não ocorre com o tu catarinense, que vem acompanhado do verbo conjugado indevidamente.

A exemplo de Santos, pelo porto do Rio de Janeiro também entraram imigrantes, muito mais, a começar pelos primeiros colonizadores. Depois vieram os membros da Corte portuguesa e representantes de uma infinidade de países. Não à toa, o carioca adota tanto o você quanto o tu. A impressão é que o você predomina nos ambientes mais formais e o tu no popular, nas ruas.

“Onde tu pensa que vai, mer’mão?”, indaga à entrada da comunidade, o rapazote com um belo AR-15 na mão. Eu, que ainda pretendo ficar mais um pouco por este mundo, humildemente, peço desculpas, digo que o GPS falhou, manobro o carro e retorno ao conforto e a “paz” da Zona Sul. “Tu escapou de uma boa, hem, paulischta?”, brinca o segurança do hotel. “Pra tu vê”, quase respondo.

Mais seguro ainda me sinto de volta a São Paulo, onde o que predomina é o você. Neste caso, é fácil entender. Enquanto o Rio de Janeiro vivia sob a influência da Corte Portuguesa, depois capital do Império e da República, São Paulo não passava de uma província. Aqui, por muito tempo, se falou o nhengatu, uma mistura de português com o linguajar dos povos originários.

Como se sabe, o você é uma corruptela ou síncope do aristocrático Vossa Mercê. Imaginem os iletrados bandeirantes, espalhados pelos confins da Colônia (o Brasil ainda não existia), a transmitir os proclamas e ordens do poder central. Aos ouvidos dos caboclos, Vossa Mercê virou “Vossemecê”, “Vosmecê”, em algumas regiões, “Vassuncê” e “Vancê” até chegar ao nosso popular você.

O fato é que, conjugação do verbo à parte, tanto o uso do tu, quanto o do você, é aceito pelos linguistas. O que não se pode, e dói nos ouvidos, é a salada de  pronomes pessoais e possessivos. “Tu acha que aquele carro é o seu?” Neste caso, o possessivo deveria ser “teu”, pois combina com tu, enquanto você exige o “seu”.

No final, é mais fácil aos filólogos de uma língua gigante e cinestésica como a “brasileira” aceitar essas variações, mesmo com “erros”, do que tentar ensinar a forma correta. E, antes que eu me esqueça, “se você me procurar por aí, pode ser que tu me encontre”.

Manoel Dorneles

Um comentário

  1. O catarinense castiço usa o verbo na segunda pessoa, corretamente. Os ‘importados’ é que avacalham. Os ‘manezinhos’, ainda que de uma forma abreviada, respeitam a conjugação: eles falam ‘visse?’ e ‘entendesse?’ no coloquial

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