“Mula” sem cabeça

Gonçalo Silveira Santos nasceu em um musseque (favela) de Luanda, Angola, há exatamente 20 anos. Traços negros, pele quase cor de rosa e cabelos loiros, bem crespos. Mestiço, mas no Brasil, erroneamente o tacharíamos de “nego aço” ou “sarará”. Não conheceu o pai, que viera do norte da Europa e para lá voltara há muito tempo, segundo sua mãe. Tampouco os dois irmãos, que morreram ainda bebês, como morre a maioria dos que teimam em nascer nesses lugares inóspitos e impróprios à vida. Cresceu, sabe Deus como, e nem com a mãe, Joana de Jesus, teve muito contato. Ela passava a maior parte do tempo em um hotel, no centro, onde dizia ser camareira. Até ficou com ele uns dois anos, após o seu nascimento, mas depois voltou ao trabalho e raramente aparecia. Quando vinha visitá-lo, trazia leite e bolachas, mas na maior parte do tempo, o menino vivia à mercê da caridade dos vizinhos, tão ou mais miseráveis do que ele. Em um dia ganhava um naco de pão velho, em outro um copo de leite, às vezes, um punhado de farinha. Cresceu assim mesmo, meio raquítico, meio anêmico, de teimoso.

Curioso por natureza, nem bem começou a andar, costumava circular pelas redondezas da favela a descobrir o mundo. Em suas andanças, aprendeu rápido a se esquivar das minas terrestres, colocadas nas imediações, ainda na época da revolução. Elas já tinham deixado aleijados muitos meninos como ele. Falava com todo mundo, gostava de conversar principalmente com os mais velhos, perguntava tudo. Todos lhe falavam maravilhas do Brasil, logo ali, do outro lado do Atlântico. Prometeu a si mesmo que um dia iria conhecer aquele paraíso. Aos seis anos, entrou na escola e, mesmo com o estômago quase sempre vazio, era o primeiro aluno da classe. Em paralelo, fazia bicos para sobreviver. Buscava água na fonte, fazia carretos, guardava carros no centro. Formou-se no primário, ginásio, colégio. Completados os 18 anos, imaginava um jeito de chegar ao Brasil, onde talvez até tentasse uma faculdade.

Dinheiro não tinha para a viagem, mas lhe disseram que os nigerianos poderiam ajudá-lo. Na verdade, nunca falara com esses imigrantes, que desembarcaram em Angola há uns três anos e moravam em dois ou três barracos imponentes na entrada do musseque. Tinham, no seu entender, um comportamento “meio sombrio”. Entre si, falavam no dialeto deles, com os de fora, em inglês. Chegavam sempre em carrões e um deles, o mais velho e aparentemente o chefe, costumava andar de limusine. Certo dia, Gonçalo tomou coragem e foi falar com ele, no seu parco inglês, mas foi incentivado a falar em português mesmo. Antes que pedisse qualquer coisa, ouviu: “Tenho negócios no Brasil e você pode me ser muito útil.” Era só viajar até São Paulo, levar uma “encomenda” e trazer “outra” de volta. O que ganharia, daria para ele ir de novo, dessa vez para ficar, estudar, fazer o que bem entendesse.

O rapaz pediu um tempo para pensar. Crescera sozinho no mundo, sem nenhuma referência paterna ou mesmo materna, mas nunca roubou um pedaço de pão, que fosse, nunca levantou a mão para ninguém. De repente, uma proposta dessas… não era essa a vida que imaginara para si. Mas, por outro lado, pensou se essa primeira infração não seria a única oportunidade de dar adeus a Angola para sempre. Pensado e feito, na semana seguinte, com sua melhor roupa, embarcava para o tão sonhado Brasil. Deu azar ao descer em Guarulhos bem no meio de uma blitz da Polícia Federal. Na ânsia de viajar nem notara que a foto do passaporte não era exatamente a do seu rosto “aloirado”. E, além disso, havia a fatídica “encomenda” no fundo da mochila. Gonçalo continua com seus planos de conhecer o Brasil um dia. Por enquanto, ele só conhece o aeroporto e o presídio da Polícia Federal, em São Paulo, para onde o levaram.

Manoel Dorneles

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