Quando eu tinha dez anos e morreu Walt Disney – o mago que dava cores a meu mundo infantil – minha tia Anna Flora fez um comentário que destroçou minha incipiente noção de solidariedade: “Antes ele do que eu!”

 Pois agora ela se foi. Cinquenta e oito anos depois do ‘antes ele’, ela a alguns meses de completar noventa anos. Meu primeiro pensamento ao saber de sua morte foi que eu jamais diria ‘antes ela do que eu’ naquelas circunstâncias. Mas compreendi por que ela reagiu daquele jeito diante da morte de Disney. Demorei, mas entendi.

Minha tia não era uma pessoa complicada, mas era uma pessoa complexa. Meio aristocrática perdida naquele mundo periférico em que vivíamos, demorei anos para penetrar em toda sua complexidade. Somente perto de me tornar idoso como ela é que pude compreender o eixo em que girava sua vida. Não sei se o mérito foi meu, ou se ela, afinal, decidira afastar alguns miasmas que toldavam o cenário até então nebuloso.

Ela não era uma pessoa má, afinal, como eu julgara aos dez anos de idade. Seu desprezo pela humanidade era igual ao que todos nós temos, em maior ou menor grau. Seu egocentrismo era igual ao de todas as pessoas que não são ou serão candidatas a um processo de canonização. E, como nunca a vi fazer referência a qualquer deidade, creio que ser declarada oficialmente santa não estava em seus planos.

Se ela me pareceu má em uma análise apriorística, foi porque ela nunca escondeu essas características. Honesta e sem papas na língua: talvez seja essa sua melhor e mais curta definição. Não tinha medo de parecer cruel, insensível ou mordaz. Ser fiel ao princípio da sinceridade, doesse a quem doesse, às vezes a tornava um pouco detestável. Mas quem quer ser um doce de coco a vida toda? Mesmo porque a ninguém que parece deslocado de seu mundo seria gratificante a doçura.

Dividi a infância com meus primos na casa dela, mas apenas quando meus cabelos embranqueceram – mais que os dela, note-se – é que ela parou de me ver como um sobrinho e me conferiu o certificado de ‘pessoa inteligente com quem valia a pena conversar’. Só então pude conhecer as dobras de sua personalidade, as turbulências de seu casamento, suas frustrações e alguns não raros momentos de depressão que lhe faziam desejar a morte, pelo menos da boca para fora.

Mesmo durante o tempo em que esteve internada por causa do mieloma múltiplo que a tirou de nós, ela não deixou de curtir minhas postagens no Instagram e no Facebook. “Ela gostava muito de você”, disse minha prima Cíntia, no dia em que a mãe partiu, em 6 de agosto. Portanto, acho que ela merecia este desagravo, em relação ao que escrevi sobre ela da primeira vez, em novembro de 2022 (https://contandohistoria.com.br/adeus-as-ilusoes/). Ainda que não vá se tornar santa, acho que minha tia merece um lugar melhor no panteão de minhas lembranças.

Marco Antonio Zanfra

Um comentário

  1. Pois é, ela se escondia atras da rispidez que despejava para não parecer vulnerável. Carregava magoas mas não queria que as deixassem parecer fraca pra não somar mais magoas às ja existentes. Acho que no fundo tinha certo ciume do amor que tinham pelo Walt Disney. Ela só queria se sentir amada.
    Não sei se conseguiu. ❤️

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