Tive um insight ao ver o quadrinho aí de cima com o pai do Calvin – como é mesmo o nome dele? – às voltas com a falta de seletividade da memória. Foi diante desse desenho que me lembrei de que, outro dia, me peguei, com uma vassoura na mão, cantando ‘História de um Homem Mau’, que Roberto Carlos gravou em 1965 e que eu, aos nove anos, decorei para sempre. Não tive nenhum problema para cantar a letra toda…
O mesmo não posso dizer da vassoura, no entanto, porque demorei um longo tempo para me lembrar do que estava pretendendo fazer com ela. Varrer? De onde para onde?
Percebem a gravidade da encrenca? Você depender de uma piadinha sobre confusões mentais para ter uma epifania sobre uma confusão mental de verdade que protagonizou alguns dias antes? É certo que as confusões e os brancos de memória vão-se sucedendo com uma frequência que aumenta à medida que você se aproxima de seu prazo de validade, e isso é incontestável, mas às vezes essa condição assusta.
Eu disse às vezes, porque nem sempre seu sistema de alerta fica esperto o suficiente para sentir a tragédia que pode estar implícita aí.
E é nesse ponto que eu queria chegar: até quando seu sistema de alerta vai funcionar para avisá-lo das incongruências, das limitações, dos perigos, das fragilidades que você, um velhinho cada vez mais indefeso, estará sendo obrigado a gerenciar, enquanto a renegada não vem buscá-lo? Até quando você vai discernir que não tomar certas atitudes será melhor do que arrepender-se depois por tê-las tomado?
Falhas cognitivas, esquecimentos, confusões, lapsos… tudo bem, a gente até administra! Meu temor refere-se aos cuidados – ou a falta de – com o que envolve nossa estrutura física. Exagerando um pouco: a partir de que momento um dançarino de frevo vai descobrir que seu corpo não suporta mais jogar as pernas e abanar a sombrinha para acompanhar a coreografia? Uma antiga passista de escola de samba vai depender de um entorse pélvico para entender que não tem mais estrutura para saracotear na frente da bateria?
Aos 65, acho que estou ainda muito bem. Continuo andando no mesmo ritmo lépido, continuo subindo cinco andares pela escada com desenvoltura – vá lá que seja: com quase a mesma desenvoltura –, continuo sentando e levantando com a força das próprias pernas, e erguendo bombonas de água mineral, e arrastando móveis para a faxina… Quando eu não tiver mais condições físicas de fazer isso, vou ser avisado por meu detector interno de que estou diante tarefas impróprias a um velho da minha idade?
Espero que sim. Tenho exemplos próximos de alguém que, aos 87, já caiu três vezes – com fratura na mão em uma delas e suspeita de traumatismo craniano em outra – mas continua desafiando a lei da gravidade e usando a bengala como se fosse um Carlitos desvairado. Talvez a deterioração do corpo tenha provocado a corrosão em seu sistema de alerta e ele simplesmente não perceba que deve limitar os movimentos a um padrão adequado à estrutura corporal. Ou a renegada pode vir buscá-lo antes do tempo.
O ortopedista já me proibiu de fazer qualquer esforço. Disse para usar só o dedo e dar ordens: “Você faz isso; você faz aquilo…” Só tem um problema: em casa, o “você” sou eu mesma. Complicado…☹