Licença para matar

Meu pai nunca dirigiu, nunca tivemos um carro da família, no máximo uma charrete e um cavalo, quando morávamos na roça. Talvez por isso eu nunca tenha sido um aficionado por motores, corrida, velocidade, essas coisas. Sempre encarei o automóvel como um conforto, uma comodidade, algo capaz de me transportar pra lá e pra cá. Só isso.

Quando já trabalhava e reuni condições financeiras, comprei um fusca. Ano 1974, vermelho sangue, só 12 mil quilômetros rodados, muito bem conservado. Sofreu muito nas minhas mãos o coitado. Ainda sem a carteira de motorista, frequentava a autoescola e treinava com ele. Nem precisa dizer que o carro só andava ralado.

Fiquei com o fusquinha três, quatro anos, até que o repassei a um amigo da família. Com o dinheiro da venda fui até a Mesbla e comprei um Chevette amarelo canário, também usado. Era um colírio para os meus olhos e um espanto para quem o via nas ruas. De lá para cá, possui muitos carros, Chevette branco, Corcel, Monza vermelho, Brasília, Corsa, Jeep, alguns novos, outros usados, e por aí vai.

Depois de quase 50 anos de volante, me considero um motorista bem mais ou menos. Bati poucas vezes, outras tantas, bateram no meu carro. Independentemente disso, sempre fui muito estressado no trânsito. Nunca sai no tapa com ninguém, mas inúmeras vezes, xinguei, gesticulei, mostrei o dedo médio. Quando me respondem, fico quietinho. Nem sou doido de continuar, ainda mais hoje em dia com esse tanto de gente armada por aí. Se o sujeito tiver um Porsche ou um BMW, então, me enfio debaixo do banco ou ligo logo pra funerária. 

Ainda nos tempos do fusca, discuti com um motorista de ônibus na avenida que, mais tarde, virou Radial Leste, em São Paulo, altura do bairro da Mooca. Era um sábado à tarde, em tese, de trânsito bem mais tranquilo. Não lembro direito de quem foi a fechada, se minha ou dele. Quando o xinguei, ele simplesmente acelerou o ônibus e veio atrás de mim. Bateu o desespero. Eu que não sou de correr muito, enfiei o pé no acelerador. 

Entrei numa travessa qualquer e, imaginem vocês, mesmo com passageiros no ônibus, ele me seguiu. Minha sorte, foi que encontrei uma viela. Cabia só o meu carro. Prometi naquele dia que nunca mais me estressaria com ninguém no trânsito. O tempo e alguns episódios posteriores mostraram que minha promessa fora em vão.

De outra feita, quase arrumei encrenca num posto de gasolina, também na Mooca. Eu e meu filho aguardávamos para abastecer, quando um Pálio furou a fila. Aos gritos, comecei a cobrar o motorista do veículo. Ele desceu e, junto com ele, mais uns três ou quatro brutamontes. Meu filho tentou argumentar, mas não adiantou muito. Quando se preparavam para vir em minha direção, acho que tiveram um ataque de risos. É que eu, além dos cabelos brancos, estava ao volante de um poderoso Kicks cor de rosa, de minha mulher (então diretora de vendas da Mary Kay).

Nessas idas e vindas, também já cometi algumas barbeiragens, de que me arrependo. Comprei uma Scenic zero quilômetro, bordô, para mim, o carro do ano. Sozinho, à noite, numa de minhas primeiras viagens, ia pra Itararé, divisa com o Paraná, encontrar minha mulher e meu filho, de férias na casa de minha cunhada. Me empolguei. Cheguei a dar 160 por hora, o que nunca fizera antes. Na estrada de pista simples, em Itapeva, a menos de 30 quilômetros do meu destino, tentei fazer uma ultrapassagem numa curva.

Não deu tempo. Para não bater de frente com um caminhão, voltei para a minha mão e acabei fechando um outro motorista. Ele, para não me atingir, tirou seu caminhão da estrada e por muito não caiu de uma ponte sobre o rio Pirituba. Ainda pensei em descer e pedir desculpas, mas “ele pode estar armado”, pensei. Enquanto pensava, vi que ele religou seu veículo e veio atrás de mim, piscando os faróis. Amedrontado, acelerei meu carro, bem mais leve, e só sosseguei quando o ‘escondi’ na garagem dos meus anfitriões.  

Em Santos, onde moro atualmente, tenho passado maus bocados no trânsito. Não atinei ainda com os motivos, mas a turma daqui dirige muito mal. É um tal de dar seta para um lado e entrar para o outro, isso quando dão seta, ignorar a preferência, buzinar à toa.  Às vezes ainda xingo, em outras, tento me conter. Certa noite, estou na avenida da praia, quando um sujeito entra abruptamente na minha frente. Meti o farol alto. Ele desacelera, emparelha o carro dele com o meu, abaixa o vidro e diz: “Hei, tio, não faz isso não. E se eu tivesse um revólver aqui?”   

Com motociclistas, então, já desisti de reclamar. São um terror. Do nada, surgem na contramão, desrespeitam o sinal vermelho, acham que podem ultrapassar pela esquerda e pela direita. Dia desses, estou na última faixa da direita, quase encostado no meio fio, à espera do semáforo abrir. Pois não é que o sujeito sobe com a moto na calçada e passa aos gritos. Não tinha como, mas ele queria que eu lhe desse passagem por ali, vejam só.

Mesmo com esse estresse todo, hoje, ainda gosto de dirigir, principalmente na estrada. Agora relaxo, me solto, viajo tranquilo. Na cidade já são outros quinhentos. Minha mulher e meu filho vivem a me cobrar serenidade, por conta dessa minha irritação. Eles têm razão. Admito, não tenho mais idade para sair na mão, abomino armas e, além do mais, pretendo ficar mais um pouco por aqui. De verdade, se o trânsito me estressa ou me deprime, gosto de pensar que não valho uma bala ou, quem sabe, uma voadora no peito.

Manoel Dorneles    

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