O ano era 1984 e o editor de Política da Folha era Roland Marinho Sierra. Cigarro no canto da boca, muito sério, cara meio fechada, esparramava simpatia e camaradagem durante papos no 308, o boteco que reunia parte da redação, após os fechamentos, na Alameda Barão de Campinas.

Fiz meu debut na Política em setembro de 1979, quando, junto com o Renato Faleiros e o Ubirajara Dettmar, fomos enviados a São Borja, no RS, para cobrir o retorno de Leonel Brizola ao Brasil, depois de um longo exílio.

Devem ter gostado do meu trabalho, pois na volta fui transferido de Cidades para a Política quase que definitivamente.

Naquela tarde de 84, outro retornado estava na pauta política, agora turbinada pela recém-promulgada Lei da Anistia. Jânio da Silva Quadros, ensaiava articulações para disputar a Prefeitura de São Paulo uma segunda vez.

O mesmo Jânio Quadros, ex-professor de português, ex-vereador, ex-governador, ex-prefeito e ex-presidente que renunciou ao mandato e mergulhou o país na sua maior crise institucional, a ditadura militar. Desta vez, unia-se ao velho PTB.

– Ô Carlinhos, dá um pulo até aqui. Roland me chamou à sua mesa e passou a pauta. No dia seguinte eu deveria chegar cedo ao jornal, pegar fotógrafo, motorista, carro e tocar para o Guarujá. Missão: entrevistar Jânio Quadros e descobrir seus planos para administrar a cidade de São Paulo. A última frase do Roland me deixou ressabiado:

–  Vá e não me volte sem a matéria.

Esse era o jeitão do Roland quando queria fazer graça.

Fui.

Se bem me lembro, o ex-presidente ocupava a casa de algum amigo, mas posso estar sendo traído pela memória.

Uma casa grande por fora e ampla por dentro, bem mobiliada, com escritório pequeno, mas confortável, piscina, caramanchão. Ficava localizada em um condomínio situado próximo à bela praia de Pernambuco.

Um cenário presidencial.

Uns trinta segundos depois de ter acionado a campainha surge à porta a figura de cabelos brancos, magra, vestindo o tradicional slack gelo de mangas curtas. Jânio em carne e osso, mais osso do que carne. Imaginava-o mais alto.

Cumprimentos de praxe, duas cachorrinhas a cheirar-me os calcanhares e lá fomos para o escritório que apresentava um estilo bagunça organizada. Uma poltrona, uma mesa, papéis, livros.

– Sente-se aqui.

Saquei as laudas do bolso da jaqueta e começamos a conversar. Ou melhor, ele me permitiu umas poucas perguntas. No mais do tempo, ele falou. Peripateticamente, andava de um lado para o outro, sem parar.

Só não falou o que quis porque eu o interrompia aqui e ali para propor outra questão. Disse que ganharia as eleições, que moralizaria a Prefeitura. Emudeceu quando toquei no tema da renúncia. Descabelou-se, manteve os óculos tortos na ponta do nariz e, de repente, depois de pouco mais de uma hora de entrevista, emendou em tom enérgico.

– Jornalista Carlos!

– Agora leia tudo o que eu disse ao senhor!

Gelei.

Fizera anotações gerais, ao meu estilo. Algumas frases, alguns códigos, garranchos, garatujas que só eu conhecia, referências sobre o gestual dramático, cacoetes, sotaque.

Afinal, não sou taquígrafo e naquele tempo eu confiava na minha memória. Expliquei isso tudo ao presidente (gostava de ser chamado assim) e ele, em tom grave, sentenciou.

– Se sair alguma coisa errada, processo-o.

Com a espada na Justiça sobre minha cabeça, aceitei não apenas a ameaça, mas também o convite para tomarmos um vinho do Porto junto à piscina, em companhia de dona

Eloá, sua esposa.

Serviu-me um pequeno cálice, como manda a boa etiqueta, e, ao longo de uma conversa comprida, durante a qual falamos sobre cães, flores e nada sobre política, secou, sozinho, a garrafa do precioso vinho.

Despedimo-nos. Pegamos o caminho de volta à redação.

Escrevi a matéria, para alegria do Roland. No dia seguinte, logo cedo, peguei a Folha para lamber a cria, que teve um bom destaque. Matéria longa.

Nunca mais falei com Jânio e Jânio nunca me processou.

Carlos de Oliveira

3 comentários

  1. Para mim, o Janio não cherou, nem fedeu, como se dizia antigamente. Quando se candidatou à presidente, estava entrando primário; quando foi para a prefeitura, com certeza, não votei nele. No entanto, convivi com uma pessoa que apanhou muito por causa dele: Silvana Lara, minha primeira mulher. Morava ela numa cidadezinha do interior de São Paulo, onde a política se dividia entre janistas e ademaristas. Filha de pai janista, ela sustentava a posição política dele na classe, cuja professora, dona Alzira, era ademarista de carteirinha. Vira e mexe, a mestre interrogava seus alunos sobre suas preferências políticas. O Reino dos céus a quem tinha as mesmas posições que ela. Para os demais, entre elas, a Silvana, sobravam reguadas e tapas. Pior é que, quando a coitada se queixava pra mãe em casa, apanhava mais

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