Eu canto porque o instante existe

Às três e pouco da manhã, quando acordo a contragosto e abro a porta para o gato sair, ouço uns trinados agudos e breves do lado de fora de casa, em meio à escuridão.

Às três da manhã? Isso é hora de passarinho cantar? Esse bicho sabe que quem fica acordado à noite é coruja?

(Fico imaginando, dentro das limitações de minha sonolência, que espécie de bagulho o passarinho fumou, para desandar a cantar em plena madrugada).

De manhã, ele recomeça com seus trinados, sempre curtos, sempre repetidos. O espaço entre um e outro é muito rápido, o tempo de respirar fundo e soltar novamente a voz. Pelo tom e pelo timbre, imagino que seja um pássaro pequeno, tipo um pintassilgo. Mas não me consta que pintassilgos – ou outros do mesmo porte – saiam por aí soltando seus gorjeios em meio à escuridão.

(Muito menos que sejam dados ao consumo de bagulhos).

Fico imaginando: os pássaros não soltam a voz para atrair fêmeas? Qual o problema desse notívago dos infernos, então? As fêmeas não lhe dão bola, porque ele é um nerd cabeçudo que usa óculos de fundo de garrafa? Está interessado numa passarinha que trabalha no período da noite? Alguém botou eu seu pequeno cérebro que as mulheres gostam de serenatas? Acha que está trinando um Noturno de Chopin?

Só sei que não é normal passarinho cantar de madrugada! Se fosse, eu não teria por que estar escrevendo esta crônica! Não que eu tenha a ornitologia como segundo passatempo – afinal, tenho dificuldade até para distinguir entre um bem-te-vi e uma cambacica! – mas não me lembro de ter acordado, em minhas quase sete décadas de vida, com um passarinho cantando na janela.

Talvez a serenata seja para mim, afinal! E eu aqui, falando mal do coitadinho!

Em tempo: enquanto procurava uma imagem para ilustrar este texto, vi no Google que, sim, alguns pássaros cantam à noite, como a cotovia, o melro e até o sabiá laranjeira.

Marco Antonio Zanfra

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