E viveram felizes para sempre

Jamais concordei inteiramente com o desenrolar dessas histórias que contavam para a gente, na infância, para nos mostrar que, no fundo, o mundo é lindo e o Bem há de triunfar. Sempre as achei muito conto de fadas, se me entendem. Sempre achei um pouco forçado demais, por exemplo, alguém se casar e viver feliz para sempre, como acontece com príncipes e princesas de fábulas, porque desde pequeno me conformei com o fato de que nada de bom dura para sempre.


Se para sempre é um tempão danado dentro dos padrões de medição do universo terrestre, quanto representaria naquele mundo paralelo das histórias infantis? Como é que A Bela Adormecida e o Príncipe poderiam viver felizes para sempre se, num certo dia, por exemplo, ele poderia descobrir que sua amada tinha o hábito de apertar o tubo de pasta de dente pelo meio? Quanto tempo ele conseguiria continuar dormindo com ela, sorrindo de felicidade, depois de perceber que aquele seu suave ressonar estava se transformando, dia após dia, num ronco cavo e estridente?


Acho que meus padrões de realidade sempre foram muito fortes, desde criança. Nunca consegui aceitar, por exemplo, que alguém pudesse ir a um baile e dançar uma valsa rodada usando sapatinhos de cristal. Por mais delicados que fossem os pés dos personagens das histórias infantis, seria impossível que, naquele alvoroço da festa, ninguém pisasse nos pés da Cinderela, quebrasse os sapatinhos e, inclusive, a submetesse ao risco de uma grave lesão hemorrágica.


Mais: quem conseguiria – e em quanto tempo – deixar os cabelos crescerem mais de vinte metros e, sem a ajuda de tônicos capilares ou xampus, mantê-los fortes o suficiente para suportar o peso de um príncipe encantado? Sou mais propenso a acreditar que Rapunzel jogava mesmo era um rolo de cordas para que seu amado tivesse acesso ao aconchego da torre onde ela era mantida confinada.


Branca de Neve? Que ser humano em sã consciência, criado na opulência de um castelo (ainda que coabitando com uma Rainha Má), teria condições de viver num casebre com sete marmanjos de um metro de altura, cada um com suas idiossincrasias e seus defeitos, e ainda ocupar-se de todos os afazeres domésticos? Será que ela nunca teve ímpetos de afogá-los no banho – isso quando eles tomavam banho – num momento de estresse? Será que, no fundo, ao morder a maçã envenenada, ela não estaria mesmo querendo dar um fim a sua vidinha miserável?


Reconheço que pareço chato, um estraga-prazeres, mas felizmente não estou sozinho: descobri um livro na Espanha, publicado há alguns anos, em que os personagens das histórias infantis deixam de comportar-se como personagens de histórias infantis para assumirem seu lado mais real, mais humano.

Cinderela, por exemplo, nem dá bola para as doze badaladas, vai embora do baile no meio da madrugada e abandona o príncipe. Branca de Neve só suporta a depressão à base de Prozac e resolveu tomar sol para bronzear a pele. A novidade da Bela Adormecida é que ela acordou sozinha de seu sono encantado.
O livro foi lançado de forma independente, porque as editoras espanholas não o quiseram publicar, talvez temendo quebrar o encanto fabular. ‘La Cenicienta Que No Queria Comer Perdices’ foi criado pela escritora Nunila López Salamero e pela desenhista Myriam Cameros Sierra e vendeu mais de 50 mil exemplares nas primeiras semanas após o lançamento. Isso significa que, ao contrário do que julgavam as editoras, muita gente vê os contos de fada com olhos mais realistas, como nós.

Pode parecer meio sem graça, mas desde quando a realidade é engraçada?

Em tempo: diferentemente das histórias infantis brasileiras, onde os protagonistas casam-se e vivem felizes para sempre, os personagens espanhóis, ao final da história são felizes e comem perdizes. Daí, o título “a Cinderela que não queria comer perdizes”.

Marco Antonio Zanfra

2 comentários

  1. Além de pão duro, você é o próprio lobo mau, a assoprar o castelo de fantasias da criançada, ufa. E não se fie muito nesses espanhóis, cujo principal herói vive a lutar contra moinhos de vento!

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