Como se houvesse amanhã

Manhã qualquer de abril de 2020. O despertador do celular toca, como de costume, reviro na cama, tento cochilar mais um pouco, durmo mais meia hora. Acordo assustado, com a sensação de que perdi a hora do trabalho, do meu descompromisso diário. Leva um tempo para eu descobrir que realmente não tenho nada marcado nesse dia. A bem da verdade, nem sei bem que dia é hoje, mas quem se importa? Segunda, terça, quinta, sexta, domingo, que diferença faz? Todo dia é segunda, todo dia é sexta, neste planeta estranho onde nos obrigam a viver confinados. Ligo a tevê, ainda sonolento, um ser aparentemente extraterrestre (imagino) discorre sobre o tal do vírus que tem atormentado a Terra. Como se já não bastassem tantos problemas por aqui. Tantos suspeitos, tantos casos, tantos mortos ao redor do mundo, inclusive no Brasil. Entra um repórter diretamente de Brasília, outro de São Paulo, um terceiro do Rio de Janeiro, as notícias não mudam muito, tampouco as estatísticas. A moça que comenta sobre tempo e temperatura diz que está tudo bem, sol e calor lá fora. O ar tonou-se um pouco mais respirável; circulam menos carros nas ruas e com isso os índices de poluição foram reduzidos. Para a noite, encomendaram até uma super Lua, tomara que não esteja nublado, penso, mas a moça do tempo, como que a adivinhar meus pensamentos, lembra que com os baixos índices de poluentes, o espetáculo estará garantido. Promessa de poucas nuvens no céu, mas em São Paulo não dá pra confiar. Entra uma outra repórter para falar do trânsito e, pasmem, zero quilômetro de congestionamento na maior cidade da América Latina. Um carro aqui, outro acolá, tá todo mundo em casa. Faz sentido, pela janela, capto a gritaria de um bando de maritacas numa praça vizinha de minha casa. Elas sempre estiveram lá, mas só agora, com a cidade vazia de veículos, é possível ouvi-las.
Estamos na chamada quarentena, mas nem por isso deixo de dar minhas corridinhas diárias, seis, sete quilômetros. Hoje não será diferente. Na rua, sou obrigado a ouvir um ou outro engraçadinho, a sugerir que eu volte pra casa. “Olha o Covid, tiozinho!”. Gritou e acelerou, nem sei se deu tempo dele ver o meu dedo médio levantado. Dane-se. De verdade, confesso que desde o início fui um “quarentemado” meio rebelde. Nem sei quantas vezes tive vontade de arrebentar a televisão, quando um certo governador, todo engomadinho, anunciava o prolongamento da nossa reclusão. Minha rebeldia, mais de uma vez me levou à praia. Eu e um amigo arrumamos uma casa em Ubatumirim (Litoral Norte de São Paulo), não tão próxima da praia exatamente, mas no chamado Sertão, a quase 10 quilômetros do mar. A primeira vez, acho que foi em junho, chegamos à noitinha. Vimos um bar aberto na vilinha, lembrem-se de que em São Paulo, estava tudo fechado. “Podemos entrar?” Pode, disse a proprietária do local. Eu, meu filho e o amigo nem acreditamos. “Sem máscara?” Tudo bem, emendou ela. Sentamos e pedimos uma cerveja, pela primeira vez em mais de três meses de reclusão. Quando ela chegou à mesa, quase chorei de emoção. Além das cachoeiras, há um monte delas naquela região, curtimos o mar, a faixa de areia praticamente vazia, no mais perfeito isolamento social. Em outra ocasião, tive o prazer de conhecer a Península de Maraú, na Bahia, uma viagem programada pra março, mas que foi adiada alguns meses por conta da pandemia. Além disso, estivemos também na região da Serra da Canastra, em Minas Gerais, numa pousada no meio do nada, totalmente isolada do mundo.  
Corta para 2021, quase fevereiro – que neste ano não tem mesmo carnaval. O que mudou desde o longínquo abril de 2020? Já não estamos tão confinados quanto antes, embora devêssemos e, além do mais, as coletivas semanais do tal governador já não nos afetam tanto. Continuo nas minhas corridas matinais, a planejar minhas viagens, algumas factíveis, outras ainda à espera de que tudo se normalize. Doem muito mais as notícias de que a “gripezinha”, alardeada pelo sujeito que deveria comandar o nosso país, já matou quase 250 mil pessoas, muito mais do que numa eventual guerra. Aqui e ali, a tevê mostra também algumas ameaças de vacinas (a briga política que elas envolvem) e, ao mesmo tempo, as variantes do vírus, segundo os especialistas, muito mais céleres e contaminantes. Concluo que o novo e ansiado amanhã parece ainda longe de raiar no horizonte e que, diante da atual conjuntura, vai demorar muito para assistirmos ao menos um ligeiro ensaio dele.


Manoel Dorneles

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