Carequito e seu presépio

Nascera ali mesmo no cais, belo feito um anjo. Cabelos loiros encaracolados, pele clara acetinada, olhos azuis da cor do mar. Não deste mar cheio de óleo e graxa do porto, mas daquele bem distante, talvez do Havaí ou Polinésia.

Mais de uma vez tentaram embarcá-lo em um navio rumo à Suécia, Dinamarca ou Alemanha, onde teria boa vida e, diziam, pais postiços, uma família enfim. Nunca quis e, mesmo se quisesse, Gabão, Tarzan e Teca, o povo que vivia do movimento do cais e, bem ou mal, cuidava dele, não deixava.

Nem o pessoal do Conselho Tutelar chegava perto. Só não puderam impedir a ação da turma da Secretaria da Higiene e Saúde, que trocou seus cachos loiros por uma careca brilhante – sabe como é, precisavam protegê-lo dos piolhos de pombos que infestavam o porto.

Aos seis anos, banguela, já não tinha mais a pele de cetim que, aos poucos, foi sendo coberta pela fuligem, enquanto seus olhos ganhavam um tom de azul como que turvado pela névoa da manhã.

Ganhou o apelido de Carequito de uns marinheiros argentinos, que não conseguiam pronunciar direito Clarinelson, seu nome, fusão de Clara, a mãe, e Nelson, o pai. Dos dois, aliás, sabia muito pouco. Ela sumiu, mal ele completou três anos; ele, vai saber, andava por aí, pelos portos do mundo.

Carequito comia o que lhe dava a turma do cais. Dormia quando e onde tinha sono. Enquanto dormia, sonhava como toda criança. Um sonho recorrente: um enorme presépio de Natal, desses que entrevia na tevê do bar do Peter Pimpão ou nos outdoors, a mostrar um homem barbudo e uma mulher jovem; no centro, um bebê de cabelos encaracolados, pele clara acetinada, olhos azuis, azuis da cor do mar… Quanto mais próximo o Natal, mais ele sonhava com a cena. Este ano não seria diferente.

Como todo mundo sumiu do cais esta noite – até Gabão, Tarzan e Teca – e ouviu uns sinos ao longe, entremeados pelas risadas de alguns marinheiros, provavelmente bêbados -, deduziu que era noite de Natal.

Recostou numa empilhadeira, ao abrigo do sereno, e tentou dormir. Mal cochilara, foi acordado pelo barulho da água a bater numa lancha que encostava silenciosamente. Viu quando um sujeito, não muito alto, desceu armado com um fuzil, observou atentamente o movimento e fez sinal para dentro da embarcação.

Logo outros desceram, cochichando numa língua estranha, aos pares, carregando grandes caixas de madeira, diferentes de tudo quanto já vira desembarcar ali. “Meu Deus, são contrabandistas”, pensou. Encolheu-se para não ser visto, mas não adiantou muito. Colocaram as caixas no chão e o cercaram, armas na mão. Ele tremia e chorava de medo. As carrancas assustavam, realmente, pareciam ser gente má, menos um, o que devia ser o chefe.

Cabelos e barba compridos, com uma espécie de túnica amarela amarrada por um cordão na cintura, ele o olhava com carinho. Com um aceno, mandou que os demais se afastassem. Quando levantou os olhos, ainda lacrimejantes, se viu entre o barbudo e uma mulher. Branca, cabelos compridos escuros, sob um lenço, olhos doces. Bonita, bem mais que a Teca, até então a mulher mais linda que conhecera.

Sob o olhar de aprovação do companheiro, ela passou a mão fina na sua careca áspera e acariciou seu rosto sujo. Sentou-se no chão, pegou-o no colo, colocou sua cabeça entre seus seios macios e perfumados e cantou naquela língua que lhe era estranha uma bela canção de ninar. Naquela noite, Carequito teve certeza de que não ia sonhar com o presépio, era parte de um…

Manoel Dorneles

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