Cama quente, coração frio

Se disser que foi fácil, moço, oi que não foi não. Mais de 60 dias sob uma barraca de lona em frente do quartel, sujeito a calor, chuvas e trovoadas, não é qualquer um que aguenta. Como dizia minha santa mãezinha “só Deus na causa”. Quando me alistei para o tiro de guerra lá em Poço das Antas, onde nasci, escapei por pouco de servir o governo. Me salvou um furúnculo, bem localizado naquela região que as pessoas, normalmente, usam para se sentar.

Decorridos quase 20 anos, eis que surgiu outra oportunidade de eu me “alistar”. Passaram uns sujeitos lá na praça da matriz, dizendo que precisavam de gente para “salvar o Brasil do comunismo”. Não exigia muito esforço, era só ficar acampado uns dias em frente do quartel. Claro que não no quartel de Poço das Antas, um cubículo, no meio do pasto. Tinha que ser no quartel grandão, lá da capital do meu estado.

– Pra salvar o Brasil desse tal de “comunismo”, o que mais que a gente ganha? À pergunta do Zé da Farofa, meu velho parceiro de dominó, nas mesinhas ali do largo, o “recrutador” deu uma risadinha marota e respondeu:

– Olha, não é muito, mas acho que é mais do que vocês ganhariam em qualquer emprego por aqui. Cem reais por dia, três refeições e transporte gratuito. Só arrumar as malas, que uma van nossa passa aqui pra pegá-los.

O Zé não se interessou muito. Solteiro, preguiçoso que só ele, mantido pela aposentadoria da mãe, não ia trocar o dominó nosso de cada dia por um acampamento sabe-se lá onde. Eu não. Já fiquei de orelha em pé. Vou embarcar nessa aí, pensei. Faz tempo que estou à procura de um trabalho, não vou desperdiçar uma oportunidade dessas. A Rozilda, minha mulher, e o Rozinaldo, meu filhinho, precisam de comida na mesa.

Chamei o sujeito de lado, disse que tinha interesse no serviço. Ele me olhou de cima abaixo, perguntou meu nome, idade, seu eu sabia ler e escrever e disse para eu arrumar minha mochila e me apresentar no dia seguinte, bem cedo, ali mesmo na praça. Na manhã seguinte, eu e mais meia dúzia que eles conseguiram juntar embarcamos na van rumo à capital.

Foi um sucesso nossa chegada. Uma gritaria. O pessoal estourou até uns rojões desses de festa junina. O camarada que parecia ser o líder veio falar com a gente, nos deu umas camisetas amarelas da Seleção Brasileira, indicando que deveríamos usá-las no dia a dia, e apontou uma barraca grande, onde deveríamos ficar. “Lá tem colchonete, roupa de cama, sabonete, toalha, tudo o que vocês vão precisar.” Mais adiante, apontou outra barraca, onde funcionava a cozinha e o refeitório. Explicou toda a rotina do acampamento, como acordar cedo, se lavar no chuveiro comunitário, cantar o Hino Nacional e depois rezar um padre nosso “pra Deus salvar nossa pátria dos comunistas”.  

Confesso que, de início, fiquei meio assustado. Não era medo, afinal a gente estava na frente de um quartel, cheio de soldados armados, impossível que eles não fossem nos defender. A gente cantava o Hino Nacional e rezava virado para onde estava a sentinela. No final, em coro, todos gritavam feito doidos para que o Exército nos salvasse. Mas parece que não dava muito resultado, os caras passavam pra lá e pra cá e nem olhavam pro nosso lado. Quer dizer, um dia, um oficial todo cheio de botões e estrelas foi lá conversar com o nosso grupo. Ouviu nossas reivindicações, disse que ia comunicar ao comandante e ver o que podia ser feito. Não voltou mais.

Eu não entendia bem o que estava ocorrendo. Não conseguia atinar muito com a situação, nem sabia que esse comunismo era esse bicho papão todo. A bem da verdade, votei no cara que me pediram para votar, nem lembro mais o número ou nome dele. Ganhou o outro candidato, mas e daí? O que isso tem a ver com o comunismo? Só sei que o dia inteiro, passavam uns motoristas em frente do acampamento com a buzina no último. Alguns com as bandeirinhas do Brasil penduradas nas antenas gritavam palavras de incentivo, diziam para que continuássemos firmes. Outros, no entanto, xingavam, mandavam a gente trabalhar, como se aquilo não fosse o nosso trabalho.

Havia aqueles ainda mais mal-educados. Diziam que, enquanto estávamos ali, nossas mulheres estavam com outro, o Ricardão, que nossas camas estavam quentes, essas baixarias todas. Nessas horas, confesso que ficava com a pulga atrás da orelha. Sou casado de papel passado com a Rozilda, já vai fazer uns cinco anos. Conheço ela desde menina. Moça direita, de família, trabalhadora e, fora uma briguinha ou outra, sempre nos demos bem. Tivemos o Rozinaldo, piazinho esperto, quase com três anos, cujo nome, como vocês podem ver, é a junção do meu nome, Ronaldo, com o dela. Nesses mais de dois meses, foi um sacrifício, morria de saudades dele. Tinha saudades da Rozilda também, mas filho é filho, vocês sabem.   

Quando os caras falavam aquelas coisas da minha mulher, eu me lembrava de que no começo, a gente se falava toda a noite pelo celular. Ela dizia umas palavras bonitas, que eu estava fazendo falta, que me amava, aquelas coisas. Com o passar dos dias, o papo foi encolhendo. Ela já não me ligava muito, só vez ou outra pra pedir dinheiro. Nada mais. Certo dia, deu pra falar bem do seu primo Rogério, que sempre passava lá em casa, muito preocupado com ela e o guri. Curiosa essa preocupação dele, quando eu estava em casa, ele dificilmente ia lá.  

Agora estou indo embora para casa. Depois de uma confusão lá em Brasília, que eu não entendi muito bem, cada uma fala uma coisa, os caras do Exército decidiram acabar com nosso acampamento. Foram até educados, mas firmes. Tínhamos que sair dali imediatamente por ordem do governo. Dever ser o tal governo do comunismo, pensei. A van não veio desta vez, deram só o nosso pagamento da semana e o dinheiro da passagem do ônibus.

Não vejo a hora de chegar em Poço das Antas. Morrendo de saudades de brincar com o pequeno Rozinaldo. Saudades também da minha cama, depois de oito semanas, dormindo, mal e mal, num colchonete estreito. O problema é que se ela realmente estiver quente, a bruaca da Rozilda vai ter que me explicar direitinho essa história do Rogerião…    
 
Manoel Dorneles

OBS: Está é uma obra de ficção.  Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. O objetivo do autor foi criar uma situação que poderia ter ocorrido com um desfecho parecido ou mesmo diferente. Inspirado pelo texto, o leitor pode imaginar suas próprias histórias.

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