Minha sogra sofria de demência vascular, consequência de um AVC leve que a acometeu quando ainda morava em Arujá. Era como uma concussão, mas duradoura, que afetava principalmente a memória imediata. Ela se esquecia de que tinha almoçado e de que tinha tomado banho, entre outras coisas corriqueiras.
Mesmo antes do tombo que quebrou seu fêmur e a condenou à imobilidade na cama até morrer, aos 82 anos, ela tinha o hábito de passar o dia diante da tevê. Mas, graças à demência, tinha problemas com o controle remoto. Só sabia ligar o aparelho.
Se ninguém a socorresse, passaria o dia assistindo impavidamente ao mosaico com os canais a cabo exibido na tela inicial. Se um canal estivesse sintonizado e ela arriscasse mexer no controle, a recepção ficaria fora do ar, com uma tela do tipo Poltergeist, e ela permaneceria, também impavidamente, vendo o nada à sua frente, até que um de nós a colocasse novamente na frequência correta.
Meu sogro também tinha o hábito de passar o dia vendo tevê. Mas, tirando alguns escorregões eventuais, não tinha problemas com o controle remoto. Pelo contrário: gastava pilhas e pilhas zapeando pelos canais o dia inteiro, sem se ater – e, acho, sem prestar atenção a nenhum deles – nos cento e tantos canais à disposição.
Até que sossegou. Foi diagnosticado com um meningioma, um tumor na meninge, inoperável, que só faz crescer. Vive à base de anticonvulsivante. E, depois da morte da esposa, também de antidepressivo. De um ano para cá, perdeu a mobilidade: só sai da cama para a cadeira de rodas, e isso graças a uma cuidadora que é forte o suficiente para fazer o translado. De resto, dorme e vê um pouco de tevê, quase sempre o canal NHK, emissora oficial do Japão.
Aos 90 anos, sua mente vagueia. Às vezes, parece lúcido, e conversa conosco, misturando um pouco de português e japonês. Às vezes, apenas balança a cabeça, com os olhos semicerrados, e não sabemos o que se passa por trás disso. A nós, só resta ficar tentando decifrar os sinais, enquanto o ciclo não se completa.
Mas cheguei até aqui, contei esses dois casos íntimos, para questionar que surpresas desagradáveis nossa mente vai nos proporcionar no tempo que nos resta. Será que vai funcionar perfeitamente até o suspiro derradeiro? Todos sabemos que a morte é inevitável, que um dia ela vem, mas não temos como avalizar se nosso cérebro estará em sintonia até que partamos. Posso estar escrevendo este texto hoje e amanhã nem me lembrar de como se liga o computador.
A sogra era costureira; o sogro, alfaiate… e ambos transformaram-se em figuras apagadas – para dizer o mínimo. Minha mãe se foi em consequência do Alzheimer, assim como uma irmã dela. Soube de um amigo cujo pai está há seis anos de cama com o mesmo mal. O jornalista Hélio Mauro Armond, com quem trabalhei na Folha, também sucumbiu ao Alzheimer. Pessoas que tinham a atividade cerebral perfeita, e às vezes até mais estimulada por exigência profissional, acabaram vergadas pela doença.
O que esperar de nossa mente? Até quando podemos confiar que a lucidez não nos abandonará? Até quando, embora mantenhamos nossos neurônios ativos, eles estarão funcionando em compasso uns com os outros? Quem garante que nossa mente vai ficar conosco até o fim? De que nos vale a longevidade, se podemos nos tornar repolhos dispostos de forma aleatória num canteiro esburacado e coberto de capim?
Creio que não possamos fazer nada para evitar os dissabores da demência. É esperar e torcer. De minha parte, espero que continuemos, todos nós, lúcidos até o fim: eu, para escrever; meus leitores, para continuar lendo o que escrevo.
Putz, que texto mais depressivo para um belo sábado. Bem escrito, explicativo, mas derruba os velhinhos, fácil…