A literatura iconoclasta

Lancei meu último livro (e-book) pela KDP Amazon no dia 28 de junho. Em 17 de julho, recebi e-mail da KDP (Kindle Direct Publishing). A mensagem, embora claramente impessoal, começava com “seu romance publicado recentemente merece ser aplaudido”, e prosseguia sugerindo que eu o inscrevesse na oitava edição do Prêmio Kindle de Literatura.

Mesmo sendo uma mensagem, como eu disse, impessoal, encaminhada igualmente a trocentas pessoas, eu me senti lisonjeado pela lembrança. E, assim coberto de lisonjas, fui tratar da inscrição – que, na verdade, consistia apenas em colocar o termo PrêmioKindle entre as palavras-chave da publicação.

Feita a inscrição, porém, descobri antecipadamente que minha participação não seria aceita.

Explico: o item ‘b’ do artigo IV do edital do concurso veda a participação de obras que incluam “personagens de outras obras (do próprio autor ou de outros autores)”. O que é bem o meu caso: nos três primeiros livros, trabalhei com o ex-policial Marlowe como protagonista; no quarto, criei o repórter Seth Müller; no quinto e último – e que seria o eventual inscrito no 8º Prêmio Kindle – os dois personagens trabalham juntos para deslindar uma rede criminosa.

Por isso, por repetir personagens, eu seria sumariamente eliminado, numa improvável classificação para uma fase subsequente. Simplesmente porque não atendia a um requisito absurdo do edital. Absurdo porque os grandes nomes da literatura policial – não quero, nem posso, me equiparar a eles, mas temos em comum essa característica – escreveram inúmeras histórias para personagens únicos.

Quer fazer um exercício de imaginação para descobrir que consagrados escritores teriam suas obras desclassificadas pelos critérios do Prêmio Kindle? Pois vamos lá:  Raymond Chandler e seu Philip Marlowe estariam fora; Agatha Christie e o inspetor Poirot também; assim como Rex Stout e seu Nero Wolf (com seu fiel escudeiro Archie Goodwin), ou Georges Simenon e o comissário Maigret; ou Ross McDonald e seu detetive Lew Archer.

Entre os mais recentes, Michael Connelly seria desclassificado por escrever uma história com seu Harry Bosch; Dennis Lehane, igualmente, por causa da dupla Patrick Kenzie & Angela Gennaro; Lawrence Block seria eliminado por causa do ex-policial e alcoólatra em recuperação Matt Scudder; Patricia Kornwell teria de concorrer criando outra personagem que não a legista Kay Scarpetta; o norueguês Jo Nesbo teria de demitir seu policial Harry Cole; e o sueco Henning Mankell, se fosse vivo, só seria aceito se sepultasse o inspetor Kurt Wallander.

Entre os nacionais, estariam fora Tony Belloto e seu Bellini, Luiz Alfredo Garcia-Roza e o delegado Espinosa, Rubem Fonseca e o Mandrake. E por aí vai (ou não vai).

Posso ter esquecido alguns, mas creio que a amostra seja suficiente para que se perceba a incongruência do quesito. Querem defender o protagonismo dos personagens de ficção? Ou o quê?

Marco Antonio Zanfra

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