Nasci destro, pelo que eu saiba. E mesmo que não o fosse, minha mãe teria me trazido de volta à senda dos direitistas. Como minha memória não chega aos meus dois, três, primeiros anos de vida, não sei se fui vítima dela, ao tentar enveredar pelo canhotismo. Só lembro que minha irmã, uns cinco anos mais nova do que eu, levava uns tapas na mão esquerda, todas as vezes em que tentava usá-la para comer ou qualquer outra atividade.
Na cabeça daquela senhora, como da maioria das pessoas de sua época, lá nos idos de 1900 e pouco, a mão esquerda representava o mal, coisa do demo. Se Cristo senta à direita do Deus Pai, quem estiver à sua esquerda, coisa boa não deve ser, devia pensar a minha boa e santa mãezinha. E assim crescemos, sem nenhuma simpatia ou concessão aos “gauches” da vida, como disse o bom poeta Drummond.
Lá pela quinta série, que para muitos persiste até a fase adulta, nos divertíamos com o velho slogan “Mariquinha, Maricota, com a direita, com a canhota”. Alguns até praticavam, mas isso já é outra história. Só que na hora de escrever ou de comer, o meu lápis ou a colher estava sempre lá, na mão direita. Se usássemos a linguagem futebolística, podia se dizer que “a esquerda não servia nem pra eu subir no ônibus”.
Ai vocês perguntam: a menos que você seja um goleiro, o que a mão esquerda ou direita tem a ver com o futebol? Tem muito, no meu caso, um septuagenário que ainda insiste em jogar uma pelada, ao menos uma vez por semana. Sucedeu que no último carnaval, em visita à casa de parentes, no interior de São Paulo, fui convidado pelos meus sobrinhos para um jogo de futebol society.
O normal, seria refugar, afinal, é uma molecada, um pessoal estranho. Mas o fominha aqui foi. Estava tudo muito bom, o velhote aqui, a correr com uma turma com idades em torno de 20 a 30 anos. O jogo caminhava para o final, quando recebi uma bola alta na entrada da área adversária.
Sabe aquelas horas em que o cérebro pensa, mas o corpo não responde mais. O normal seria matar no peito e escorar para alguém chutar. Fiz o mais difícil, consegui dominar a bola com uma perna, mas ao me virar para chutar, perdi o equilíbrio e caí feio em cima do braço direito. Na hora, senti um pouco de incômodo, mas continuei no jogo. Ao final da peleja, o conselho mais bacana que recebi é de que eu devia esquecer o futebol e me dedicar à bocha.
Fiquei por lá mais dois dias, no entanto, sem conseguir esticar o braço afetado. De volta a Santos, fui até o pronto socorro do convênio, onde, após uns dois raio-X, foi constatado que houve uma trinca no osso do meu cotovelo. “Você tem que usar uma tala de gesso, suportada por uma tipoia, e permanecer com o braço imóvel o tempo todo”, sentenciou o ortopedista.
Se eu me comportar, no mínimo quatro semanas para o osso calcificar; do contrário, seis ou mais. Quem diz que eu consigo. Na verdade, eu deveria fazer tudo com a mão esquerda, o que para mim é absolutamente impossível. Para minha mulher, eu estou levando uma vida normal. Cozinho, vou ao mercado, à feira. Até dirijo, se bem que, como meu carro é automático, pelo menos o volante, consigo segurar com a canhota. O perigo é algum imprevisto que exija alguma manobra brusca.
Tomar banho é outro sacrifício. Minha esposa amarra um saco plástico no meu braço direito, que não pode molhar, e eu que me vire para ensaboar com a esquerda. Outra dificuldade: o número 2. Ao finalizar o processo, confesso que tenho inveja dos sumotoris japoneses. Dizem que os mais parrudões, que não conseguem alcançar o próprio traseiro, contam com o auxílio dos neófitos da academia para essa higiene íntima.
Se em termos políticos, minha cabeça, tende à esquerda, no campo físico, posso dizer que nunca senti tanto não ter também nascido canhoto. Ou pelo menos ambidestro. A direita representa o caminho mais fácil, é viciante, acomodada e, vez ou outra, lhe deixa na mão, como agora.
A esquerda exige mais esforço. Não à toa, foi escolhida pelos homens do povo e camponeses, na assembleia de 1789, que antecedeu a Revolução Francesa. Os nobres e simpatizantes da realeza optaram pelo lado direito, o viés mais fácil para o poder e as riquezas. Pena que nossa esquerda, atualmente, encontra-se como meu braço, com o osso trincado e completamente engessada.
A propósito, forçado à imobilidade, eu nem deveria estar aqui no meu notebook a digitar este texto. Mas, como bom esquerdista, continuo um rebelde sonhador.
Manoel Dorneles

Interessante o paralelo entre seu braço e a política! Mas em quatro semanas você volta a lançar mão da direita. Quando fraturei o úmero direito em Cuiabá, em 1994, fiquei cinco meses aprendendo a fazer tudo com a esquerda, e até a amarrar os sapatos com uma mão só. Se precisar hoje, porém, esqueci tudo! Afinal, a esquerda está acomodada há muito tempo!