A bíblia safadinha

Conta a lenda que, na época em que a Aids ainda era uma doença pouco conhecida – a ponto de lhe atribuírem a capacidade de ser disseminada apenas entre os homossexuais, o que lhe valeu o epíteto de ‘peste gay’, concedido na pia batismal do jornal ‘Notícias Populares’ – um repórter da sucursal paulistana da revista ‘Manchete’ escrevia uma extensa matéria sobre o assunto e acabou pagando caro por uma brincadeira que enfiaram em seu texto.

Explicando: o repórter datilografava a matéria nas laudas da revista e saiu da redação durante alguns minutos, para tomar um café ou outra atividade prosaica, deixando a máquina de escrever desguarnecida. Nesse meio tempo, um gaiato assumiu as teclas e acrescentou ao texto – que era sério, muito sério – que a Aids era “conhecida no Japão como ‘kumata’”, uma clara, tosca e debochada alusão ao caráter até então segregacionista da síndrome.

O repórter não percebeu a inserção, que só foi descoberta, felizmente, na edição da revista no Rio. Se passasse, talvez não causasse grande comoção entre os leitores da extinta publicação, porque eles basicamente costumavam apenas ler os títulos e ver as fotos. Mas certamente haveria impacto nos meios jornalísticos e possivelmente um furdunço na área judicial.

Lembrei-me dessa situação – que não vivi, mas me foi relatada – para buscar uma tentativa de explicar por que uma bíblia impressa no século XVII traria entre os mandamentos de Deus exatamente o contrário do que preconizava a igreja católica. Editado em 1631, o livrão pregava “thou fhalt commit adultery” (cometerás adultério), quando o mandamento original condenava a pulada de cerca como pecado mortal.

Teria o editor Robert Barker, tal qual o repórter da Manchete, deixado a máquina de escrever à disposição de um gaiato qualquer, que achou engraçado apagar o “not” que estaria escrito antes do “commit”? Ou o próprio Barker foi vítima de seus desejos obnubilados, também conhecidos como ato falho, e mandou ver nos mandamentos o que ele próprio pensava em fazer? Vai que, se facilitassem, ele escreveria também “thou fhalt couet thy neighbours wife” (cobiçarás a mulher do próximo)…

Na verdade, mil exemplares da bíblia foram impressos com o erro (?), só descoberto um ano depois. O editor foi multado e perdeu sua licença. Do total da tiragem, apenas vinte continuaram em circulação. Os demais livros foram destruídos. Naquele tempo, não tinha os oportunistas de hoje, que defendem a ‘liberdade de expressão’ que lhes convém. Recentemente, uma universidade da Nova Zelândia informou ter encontrado um dos volumes sobreviventes à captura da chamada ‘bíblia perversa’, ou ‘bíblia dos pecadores’.

Resta saber quantos casamentos de devotos que seguiram ao pé da letra o mandamento divino foram desfeitos desde 1631.

Marco Antonio Zanfra

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