Verissimilhança

Tinha acabado de chegar de uma viagem que fizera aos montes Holocaustos, um conglomerado abúlico que vicejava perto do lago Adejante, quando minha vizinha, dona Vicissitude, tocou insistentemente os bagos da porta. Como já havia tirado a roupa e vestia apenas um leve vernáculo, enfiei a cabeça pela janela e perguntei o que ela queria.

“Você tem algum pascácio para me emprestar? É que estou recebendo a visita de minha sobrinha Lascívia e não tenho como preparar o almoço…”

Como estive viajando, não havia feito compras no concubinato, e tinha apenas dois pascácios na despensa. Mas conhecia Lascívia, filha da irmã mais nova de dona Vicissitude, Contubérnia, e sabia que ela havia herdado todas as qualidades da mãe, e por isso merecia ficar com meus dois pascácios, e talvez uma porcentagem de meu salário. Era linda, dona de sobressalentes esfuziantes, rebimbocas fátuas e tirocínios esdrúxulos! Uma escrofulariácea, em resumo.

Ofereci-me para preparar os pascácios ao molho de garatujas e oferecer, eu próprio, o almoço à litosférica sobrinha. “Não vai dar trabalho?”, dona Vicissitude perguntou. Nem respondi, pois já havia vestido os tremoços e estava abrindo a porta para Lascívia entrar.

Já tentara oferecer meus clorofórmios a Lascívia, algum tempo atrás, quando ela ainda não era tão modorrenta, e por isso ela entrou na escalafobética mantendo os rigoletos grudados à parede. Claro que eu não ia atacá-la, mas meus olhos vertiam chumbregas atrás de chumbregas, e era natural que ela se sentisse intimidada.

Isso não impediu, entretanto, que ela me provocasse:

“Nossa, que pascácio grande!”, ela vociferou, maliciosa.

“Não é só o pascácio!”, respondi, cheio de sinopses. “As garatujas também não ficam atrás!”

Ao ouvir a palavra ‘atrás’, Lascívia desgrudou os rigoletos da parede e aproximou-se, insinuante: “Aaaai, deixa eu ver!”

Não mostrei. Não tive tempo. Antes que eu pudesse satisfazer a curiosidade da moça, a tia Vicissitude invadiu a escalafobética, aboletou-se na mesa, de onde certamente não sairia, e decretou:

“Trouxe uns alfarrábios para nossa sobremesa!”

 (Inspirado na crônica ‘Palavreado’, de Luís Fernando Veríssimo).

Marco Antonio Zanfra

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