Por causa do famoso “verão da lata”, nos idos de 1987, no Brasil, a expressão “da lata” virou, por um bom período, uma gíria para exaltar um produto de boa procedência. Aos mais jovens, convém explicar que o episódio se deu no litoral fluminense, mais precisamente na região de Maricá. À ocasião, a tripulação do navio australiano Solana Star, que estava sendo investigada pela polícia brasileira, jogou na água nada menos que umas 20 latas de maconha. Aliás, dizem os iniciados que de excelente qualidade.
Claro que as latas, cada uma com o peso em torno de um quilo e meio, boiaram e foram dar nas praias do Rio de Janeiro e São Paulo. Algumas recolhidas pelos pescadores foram entregues à polícia, enquanto outras fizeram a festa dos nativos e consumidores em geral. Até a cantora Fernanda Abreu faturou em cima ao lançar o CD “Da lata”, que fez um baita sucesso.
Não fumei dessa daí, não perdi a memória, aliás, nem sei porque estou mudando o rumo da conversa. Quero falar de uma outra lata, também histórica e de qualidade comprovada, de que a maioria dos mais novos nunca ouviu falar. Fiz aniversário no final do mês passado, recebi alguns amigos para um almoço e ganhei alguns presentes: um vinho, uma camisa, uma camiseta e uma lata de carne, melhor, carne suína na lata.
A carne na lata remete ao passado rural brasileiro, quando a energia elétrica estava restrita às áreas urbanas. Na roça, quem não tinha condições de comprar um gerador, usava lampiões e lamparinas. O banho quente era garantido pelos canos que passavam dentro do fogão a lenha. Sem geladeira, costumavam conservar a carne em grandes latas cheias de banha de porco.
O ritual era sempre o mesmo. Após o abate do capado, como se dizia, um evento não só para a família, mas também para os vizinhos, era feita a partilha dos restos mortais do falecido. O sangue e as tripas iam para o chouriço, um quarto pra fulana, um pedaço pra sicrana, e assim por diante. Após a divisão, a dona da casa fritava os pedaços de pernis, lombo e outras carnes mais nobres e os colocava nas latas, para onde ia também a banha resultante da fritura das partes mais gordas. Era mistura garantida para até seis meses.
Muitas vezes, procedente de São Paulo, nas minhas férias escolares, chegava tarde da noite no sítio do tio Juca, região de Poços de Caldas. Tia Maria corria para o fogão e, enquanto preparava o arroz, esquentava os pedaços de carne retirados das latas, cujo sabor de infância permanece até hoje em meu paladar. Ainda não abri meu presente. Quando o fizer, conto pra vocês se a empresa Xavante, de Divinópolis (MG), conseguiu resgatar com fidelidade a Carne Suína da Lata, outrora costume tradicional dos interiores do País.
Manoel Dorneles
Contando História
O que o tempo altera e vira história
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Pelo que entendi, apenas as lembranças são antigas: a lata com a carne é nova!
A memória da carne da lata de minha tia remete a uns 50, 60 anos, por aí. Agora, a lata que ganhei é muito atual. Provei e gostei; eles conseguiram reproduzi fielmente essa curiosa tradição